A falácia da igualdade

Avisos de conteúdo para menções a várias formas de discriminação, e a narrativas superficiais de "igualdade para todes"

Com a queda do muro de Berlim e de vários regimes ditatoriais na América Latina, e após décadas de lutas pelo fim da discriminação de diversos grupos marginalizados por todo o mundo, os anos 90 e 2000 popularizaram diverses filmes, séries, músicas e afins com a mensagem de que todes somos iguais, de que é importante tratar a todes igualmente.

Mas não é como se essas mensagens fossem particularmente efetivas: uma lei proibindo casamento entre pessoas do mesmo gênero na Califórnia (EUA) conseguiu milhões em doações e esteve em vigor entre 2008 e 2010, a desigualdade salarial média entre pessoas negras e brancas só reduziu para 40% de diferença quase em 2010, pouco mais de 1% des personagens na televisão estadunidense eram NHINCQ+ em 2006/7 e por assim vai. Nos anos 10, com o aumento da popularidade da internet, questões de discriminação começaram a ser apontadas de forma mais aberta e horizontal, o que deu mais visibilidade para causas sociais, resultando em mais leis antidiscriminação, mais políticas de cotas, mais preocupações com acessibilidade, mais representação na mídia de vivências marginalizadas e outros ganhos.

No entanto, mesmo que tais medidas sejam amplamente consideradas justas e beneficiais para pessoas marginalizadas, ainda tem gente que traz a ideia de que “todes deveriam ser tratades igualmente”. Isso ocorre, por exemplo, quando alguém fala que defende questões como igualdade salarial e fim de crimes de ódio, mas que não gosta de medidas como cotas, exigências para que pessoas da mesma raça, nacionalidade ou modalidade de gênero representem personagens com tais características em adaptações ou até mesmo medidas que afastam pessoas por conta de terem falado mal de um grupo marginalizado que também não afastam pessoas por falar mal de um grupo privilegiado.

Pois bem, a grande questão aqui é que existem estruturas de poder que beneficiam alguns grupos, mas não outros. Não é importante reservar espaço em um desenho animado para personagens cis, hétero, magres ou branques porque já são características dominantes na mídia. É importante haverem cotas universitárias para pessoas que estudaram em escolas públicas porque, em geral, vão ser pessoas sem a segunda opção de ir atrás de uma faculdade particular para prosseguir estudando. É importante reservar cotas de projetos culturais para pessoas negras e indígenas porque são pessoas com menos oportunidade de financiamento independente, e cujos projetos podem ser vistos como “nichados” por pessoas brancas ainda que representem realidades de partes grandes da população que não são representadas em mídias de massa.

“Tratar todo mundo igual” não funciona quando o mundo é desigual.

Se a sociedade tem um padrão e a intenção é a de contribuir para que a sociedade seja mais justa, se firmar como isente da responsabilidade de buscar qual é a forma justa de agir pode até não piorar a vida de pessoas marginalizadas, mas também não vai livrar ninguém ou nenhum grupo de ser enquadrade como cissexista/racista/heteronormativa/capacitista/misógine/etc.

Isso também é relevante em escalas menores. Se alguém se mexe de forma peculiar e outras pessoas apontam o quanto aquilo é esquisito ou engraçado, não importa o quanto isso seria feito contra qualquer pessoa agindo da mesma forma: ainda é um julgamento capacitista e/ou colonialista (ou mesmo opressivo de outras formas) de “como pessoas normais se expressam”. É importante evitar tirar sarro ao entender que aquele comportamento é normal com base em fazer parte de um grupo marginalizado, mas a realidade é que a linha das ações vistas como “normais” ou como “ridículas” por si só são fundadas em preconceitos que beneficiam grupos opressivos. A ridicularização pública de “comportamentos esquisitos” serve como ferramenta de silenciamento de pessoas que não alcançam padrões normativos.

Como um outro exemplo, se ume chefe dá para sues empregades o mesmo calendário de feriados com a intenção de ser politicamente neutre, provavelmente elu estará também ignorando feriados religiosos que vão cair em diferentes datas dependendo da pessoa. Caso pense no Natal como um feriado importante por conta de ser popular, isso ainda normaliza a cultura cristã como padrão, enquanto cerimônias de outras religiões são consideradas “menos universais”.

Já vi pessoas defendendo que já que personagens hétero geralmente não se dizem hétero na mídia, isso faz com que todes es personagens heterodissidentes também devessem evitar falar sobre se são gays, lésbiques, bi, pan, assexuais ou afins. Enquanto algumas orientações sejam mais ou menos decifráveis por conta de comentários e ações, não só é importante que termos para orientações heterodissidentes deixem de ser vistos como tabu como também nem todas as narrativas são óbvias. Pessoas de orientação fluida existem, assim como pessoas que mantém relacionamentos sem sentir atração, e essas narrativas são apagadas quando há um incentivo a nunca falar de rótulos. Essa ideia também coloca certas vivências heterodissidentes - aquelas onde termos específicos são discutidos - como indesejáveis ou menos realistas. A neutralidade em nunca falar do assunto só reforça narrativas heteronormativas e derivadas.

Todos estes pontos que fiz são questões nas quais acredito. Eu os trouxe por conta da amplitude do problema, que não se limita a uma atitude ou a uma forma de opressão. Dito isso, quero colocar em evidência a forma que o exorsexismo e o exilinguismo agem, porque a atitude de “tratar pessoas igualmente” com base em um padrão social binário também nos prejudica, e este é um assunto pouco comentado.

Exorsexismo é a opressão que exclui pessoas que não se encaixam completamente, sempre e somente como homens ou como mulheres. Isso ocorre de várias formas, como, por exemplo:

A questão é que, dentro de uma sociedade exorsexista, não adianta só “respeitar todas as identidades de gênero igualmente”. Não quando isso significa tolerar termos que descrevem feminilidade, masculinidade, ser homem ou ser mulher porque “são intuitivos”, enquanto aponta-se que termos que descrevem pessoas não-binárias “são forçados”. Não quando presumir a identidade de gênero e a linguagem pessoal alheia é uma ação vista como “natural” ou “educada”, de forma que pessoas cisdissidentes ou inconformistas de gênero precisam se explicar e/ou corrigir presunções errôneas e pessoas não-binárias e/ou que usam neolinguagem podem ter que ir além de explicações simplificadas para serem compreendidas ou respeitadas.

Identidades não-binárias não são “igualmente fáceis de entender” ou de presumir em sociedades que insistem que gênero é formado pela expressão de gênero preferida, por papéis de gênero, pela criação e pela corporalidade, sendo todas estas divididas de formas binárias, ainda que existam muitos exemplos provando o quanto essas coisas não precisam se alinhar para que alguém se diga homem ou mulher. Enquanto pessoas cisdissidentes binárias (incluindo aqui pessoas trans que só se veem como mulheres ou como homens, mas também pessoas ipsogênero, ultergênero e afins) precisam provar para uma sociedade cissexista que devem ser categorizadas corretamente por conta do quanto se encaixam nos padrões esperados, a possibilidade de pessoas não-binárias existirem é amplamente rejeitada, não importa o quanto certos setores da comunidade não-binária tentam se justificar com a existência de espaços liminares ou fluidos entre gêneros binários ou explicações sobre a importância política de rejeitar categorizações de gênero.

Essas “explicações simplificadas” sobre não-binaridade que tentam apelar para um “senso comum” (o qual ainda é cisnormativo e conformista de gênero) podem até ocasionalmente partir de um lugar de desespero ou de tentar abrir espaço para algum reconhecimento, mas, a longo prazo, elas só criam mais barreiras para que pessoas não-binárias e outras pessoas cisdissidentes possam se reinvindicar suas identidades de forma livre. Pessoas não-binárias femininas e masculinas merecem tanto respeito e reconhecimento quanto pessoas que não possuem gênero nenhum. As particularidades de pessoas aporagênero, xenogênero e egogênero não merecem ser reduzidas a noções superficiais de neutralidade, androginia ou rejeição política ao binário de gênero, e estas categorias também merecem vocabulário próprio que diferencia tais experiências para quem quiser especificá-las.

A questão de identidades, expressões e modalidades de gênero serem autodeterminadas ao invés de impostas foge de percepções superficiais sobre esses assuntos. Ela requer um rompimento com o senso comum de que essas questões podem e devem ser presumidas. Por isso, só “não entender, mas respeitar igualmente” não é o suficiente, porque não adianta respeitar uma pessoa que se diz não-binária só para depois associar certas genitálias ou roupas a ser homem ou a ser mulher. Não adianta pregar respeito à autodeterminação de pessoas trans quando também é demonstrado desgosto pela “esquisitice” ou “especificidade gratuita” de identidades xenogênero.

A mesma coisa se aplica a conjuntos de linguagem pessoal diferenciados. Sim, -/ael/e pode não ser um conjunto tão intuitivo quanto a/ela/a ou o/ele/o: tal conjunto, ou qualquer outro fora dos padrões, exige uma conscientização maior do que uma troca entre “tratar alguém como homem” e “tratar alguém como mulher”. Tais conjuntos questionam a limitação da expressão de gênero gramatical a duas opções marcadas como binárias, assim como a ideia de que é possível presumir que conjuntos alguém usa com base na aparência ou na identidade de gênero.

Conjuntos que requerem especificações, usados por pessoas desconfortáveis com jogar todas as possibilidades para além de a/ela/a e de o/ele/o no balde da “linguagem neutra”, também questionam a narrativa de que se todas as pessoas que não são homens e nem mulheres são não-binárias, todas estas pessoas só precisam de algum “gênero neutro” qualquer a ser embutido no vocabulário popular sem que tais pessoas possam opinar sobre elementos específicos com os quais se sentem mais confortáveis.

Em um mundo onde linguagem pessoal é vista como fundamentalmente atada com expressão ou com identidade de gênero, e como uma questão que deve ser atribuída externamente, a rejeição de um “gênero gramatical neutro” escolhido com base na preferência de quem vai tratar a pessoa, e não da pessoa em si, é também uma reinvindicação contra um sistema de pronomes, artigos e outros elementos gramaticais já prontos. Não queremos simplesmente a normalização de marcadores neutros, mas sim a abertura para que todas as pessoas possam refletir sobre como querem ser tratadas sem a obrigação de seguir gêneros gramaticais já prontos.

Para respeitar e incluir todas as pessoas não-binárias e usuárias de neolinguagem, não é possível só fazer a mesma quantidade de esforço necessária para “nos tratar igual a todo mundo”, quando o “mundo” em questão é construído com suposições e imposições que nos trazem desvantagens a todo momento. (E isso se aplica a outras opressões também.)


É possível fazer contribuições financeiras para ze autore deste texto por estes meios.