Como se referir a um gênero imposto?

Reflexões sobre a proposta de substituir "designade/atribuíde mulher/homem ao nascer" por "feminilizade/masculinizade ao nascer".

Este texto presume uma certa familiaridade com conceitos anticissexistas, como a ideia de que pessoas não nascem com certo gênero, e sim possuem algum gênero imposto a elas com os quais elas podem ou não se sentir confortáveis, a existência de pessoas intersexo e a existência de pessoas que passam por processos físicos de transição corporal. Também menciona termos como não-binárie, transfeminine, transmasculine e outros termos relacionados com identidades de gênero.


Acredito que a proposta dos termos FN (feminilizade ao nascer) e MN (masculinizade ao nascer) consista dos dois itens:

  1. A utilização de siglas mais simples para adaptar AFAB/AMAB na língua portuguesa, de forma que pessoas fiquem mais tentadas de usá-la ao invés de alguma tradução direta da qual menos pessoas vão ter conhecimento;
  2. Enfatizar a artificialidade da atribuição de um rótulo de “sexo”/gênero ao nascer, que é uma imposição ao invés de um fator natural.

(AFAB = Assigned Female At Birth, AMAB = Assigned Male At Birth; isto é, “designade [sexo/gênero] ao nascer”. Estes termos já foram disponibilizados de forma traduzida, mas ainda é comum ver pessoas em comunidades lusófonas usando as siglas na língua inglesa.)

Pois bem, eu não acho que nenhuma dessas questões seja um grande problema. Eu não vou recomendar a pessoas que deixem de usar essas siglas como recomendo que pessoas deixem de usar as orientações gine e andro por conta de seus históricos ambíguos e problemáticos. Mas há fatores que me incomodam em tal terminologia, que me levam a não querer utilizá-la:

Atribuição é (ou deveria ser) a descrição de um único fator

Enquanto é possível discutir fatores como exames pré-natais e redesignações de documentos de bebês intersexo, o que os termos “atribuíde mulher/homem ao nascer” discutem é o campo “sexo” da certidão de nascimento. Nada mais ou menos do que isso.

Infelizmente, tanto pessoas cis quanto pessoas cisdissidentes muitas vezes presumem que tal atribuição obrigatoriamente inclua outros fatores com base em suas próprias experiências, falando que crianças designadas mulheres ou homens foram obrigadas a fazer tal ou tal coisa, possuem tal ou tal função corporal e possuem tal ou tal aparência. Tais generalizações podem ser importantes ao exemplificar problemas que pessoas enfrentam com base em suas modalidades ou expressões de gênero, mas elas não são verdades absolutas, e agir como fossem acaba por contribuir com o cissexismo. Mesmo que um termo como “pessoa feminilizada ao nascer” ou “pessoa que foi atribuída mulher ao nascer” esteja sendo usado no lugar de algo como “sexo feminino” ou “biologicamente mulher”.

Por exemplo, o problema de não ter a passabilidade de uma mulher e, por conta disso, não querer ir no banheiro denominado como feminino, ainda que tenha medo de ir no denominado como masculino, não é um problema único a pessoas que foram atribuídas certo gênero ao nascer, porque terapia hormonal existe e pode mudar drasticamente a aparência de uma pessoa. Já uma função corporal como menstruação pode existir em certas pessoas intersexo que foram atribuídas o gênero homem ao nascer, enquanto várias pessoas que foram atribuídas o gênero mulher ao nascer não menstruam por uma gama de motivos. Binders são úteis para quaisquer pessoas com seios que querem escondê-los na medida do possível, e isso pode incluir pessoas transfemininas que começaram terapia hormonal e não se abriram sobre isso em todos os lugares. Porém, infelizmente, até em comunidades trans temos pessoas insistindo que seus dilemas ou que certas pautas são únicas a pessoas que tiveram um certo gênero atribuído ao nascer.

Talvez a intenção dos termos feminilizade ao nascer e masculinizade ao nascer tenham sido a de falar somente dos documentos. Dito isso, não posso deixar de perceber que, em um contexto social onde já temos tantas pessoas aumentando a importância da atribuição ao nascer, é muito mais fácil de abusar esses termos mais vagos para tentar atribuir teorias de “socialização feminina/masculina” ou mesmo de insistir que dentro de todas as realidades há mais experiências em comum de pessoas com certa marcação em um documento do que realmente existem.

Fora do contexto de entender o que “masculinizade/feminilizade ao nascer” significa, o que esses termos me remetem é mais a questão das normas de gênero impostas a bebês ou mesmo de cirurgias abusivas contra bebês intersexo do que a uma palavra em um documento. Eu entendo que neolinguagem não é popular o suficiente para que crianças cujas famílias tentem “dar uma criação neutra” sejam tratadas com um conjunto de linguagem que não é associado com sua atribuição de gênero ao nascer, mas fora isso, existem várias pessoas que crescem ou cresceram de formas muito mais livres do que as colocações gerais sobre imposições de normas de gênero a crianças presumem.

Além disso, uma criança intersexo que teve que ser registrada com um “sexo” binário na certidão, mas que a família dá liberdade de escolher qual gênero quiser ser e recusou quaisquer cirurgias oferecidas, foi feminilizada/masculinizada ao nascer? Ume fa’afafine que está com “male” em sua certidão de nascimento, mas que foi criade com normas de gênero femininas foi masculinizade ao nascer? Ao pensar nesses termos como descrições de um gênero atribuído ao nascer, sim, mas não deixo de me preocupar com a facilidade de abuso desses termos, quando ainda temos tantas pessoas presumindo que termos que são mais explicitamente sobre documentos inferem outras circunstâncias sobre a vida de cada pessoa.

O sumiço do C

Em espaços anglófonos de mais ou menos uma década atrás, eu tenho a impressão que CAMAB/CAFAB eram termos tão utilizados quanto suas versões que não começam com C. Isso porque pessoas trans tinham a tendência de falar que eram coercivamente designadas um gênero ao nascer, em um espírito que acredito que seja mais próximo ao de FN/MN.

Acho que duas coisas podem ter acontecido para esse C cair:

  1. Quanto mais pessoas discutiam questões de ter gênero tal atribuído ao nascer, mais cresceu o foco em falar de atribuição em geral, sem o foco nela ser coerciva.
  2. Alguns grupos começaram a dizer que o C veio de pessoas intersexo, e que usar ele para todas as situações ou para todas as pessoas cisdissidentes apagava o sentido do termo.

Pessoas intersexo que passaram por mutilação genital quando bebês já tinham os termos próprios com a adição de um F de forçadamente, e quaisquer pessoas intersexo podiam usar I para intersexo ou incorretamente. É possível que os termos tenham sido confundidos, ou mesmo que esta narrativa da banalização do termo tenha sido manufaturada, mas o fato é que atualmente não se fala tanto da atribuição de gênero ao nascer ser coerciva.

O fato é, já existia um termo mais politicamente carregado para usar em situações onde essa ênfase é relevante. Além disso, se mesmo falar que a atribuição de gênero ao nascer é coerciva já semeou dúvidas sobre a legitimidade da utilização do termo fora de contextos intersexo, o quanto termos que deixam implícita uma ação externa feita sobre o corpo de um bebê por conta de sua genitália serão interpretados como aplicáveis fora de contextos intersexo?

O problema real

Mencionar gêneros impostos ao nascer raramente é relevante.

Eles não indicam aparência, não indicam identidade de gênero, não indicam orientação sexual, não indicam os níveis hormonais de um corpo, não indicam genitália, não indicam os cromossomos que alguém tem, não indicam o quanto o ambiente ao redor da pessoa quando criança a empurrou papéis de gênero e não indicam o gênero gramatical que estranhes atribuem à pessoa. Terapia hormonal e cirurgias para mudança de genitália e retirada de gônadas existem e são comuns em meios cisdissidentes. Retirada de órgãos considerados parte das características sexuais por conta de acidentes ou doenças também é algo que ocorre mesmo em pessoas cis.

Algo importante de praticar é: antes de usar um termo indicando a imposição de um gênero ao nascer, refletir sobre (1) se há relevância ao relato/comentário e se (2) não é melhor normalizar um vocabulário mais específico sobre a questão. Por exemplo, “fui criade com minha família querendo que eu crescesse para ser homem conformista de gênero” especifica uma experiência, enquanto “tive uma criação MN/AMAB/DHAN”, embora pareça um resumo prático, reforça a ideia de uma uniformidade social supostamente aplicável a todas as pessoas que foram atribuídas o “sexo masculino” nos documentos, mesmo com cada vez mais famílias deixando crianças se expressarem de formas diferentes ou apoiando suas vivências trans.

Preservativos internos e externos, produtos menstruais, roupas largas, seios, barba, pênis, vagina, curvas, terapia hormonal com [hormônio] e afins são formas de especificar questões que alguém tem ou quer ter sem reduzi-las a questões “de/para corpo imposto tal gênero ao nascer”, ou, pior, de pessoas “biologicamente mulheres/homens”. Fazer tal esforço também pode ajudar a desconstruir o cissexismo internalizado de que corpos com certa aparência pertencem a certo gênero “por padrão”.

Aliás, essa questão também vale para a alternativa que presume que uma pessoa tem que ser mulher trans, homem trans, pessoa transfeminina ou pessoa transmasculina caso tenha tido experiência com certo procedimento médico, tenha certa aparência ou mencione ter certa parte do corpo. Novamente, transição física e pessoas intersexo existem. Além disso, nem toda pessoa passando por transição física está confortável em se colocar como transfeminina ou transmasculina, por mais que isso seja mais prático para aquelus mais próximes do binário de gênero. Uma pessoa não-binária pode tomar estrogênio e não querer se colocar em nenhum termo transicional como transfeminine ou transandrógine. Outra pessoa pode ter feito mastectomia por ser agênero e se considerar transnula ou transneutra, mas não transmasculina.

Presumir identidades, expressões ou alinhamentos de gênero com base em experiências relatadas ou aparência não deixa de ser um problema só porque a presunção é sobre a pessoa ser determinado tipo de pessoa trans.

Conclusões

Meu objetivo não é o de eliminar completamente a linguagem relacionada à imposição de gênero. Tem vezes que ela é útil ou relevante, como em discussões sobre quem pode usar determinados termos definidos em volta de tais questões e certas questões de retificação de documentos.

Porém, na maior parte do tempo, os contextos onde presencio tais terminologias é em categorizações presunçosas, desnecessárias e/ou que apagam ativamente muitas experiências inconformistas de gênero, trans, intersexo ou outras. Não acho que trocar a terminologia por outra com conotações um pouco mais políticas é uma questão que vai resolver isso. As pessoas já tratam siglas de “atribuíde homem/mulher ao nascer” como substantivos ou identidades, e essa é uma questão de cissexismo enraizado causando uma troca de terminologia entre “biologicamente tal” pela de gênero atribuído sem maiores reflexões sobre que narrativas isso impõe/normaliza.

Sobre os termos FN/MN, eu não julgo quem usar, mas não acho melhores do que falar sobre gênero imposto ao nascer (embora tenha interesse em saber o que outras pessoas intersexo acham disso). Aliás, acho que minha recomendação é evitar usar quaisquer siglas: se esforçar em digitar tais palavras por extenso e refletir sobre o quanto as frases usando essas terminologias ainda fazem sentido se as siglas fore de tal forma.