Invalidação, indiferença e validação cissexista

AC: Exorsexismo, cissexismo, maldenominação, menções a reducionismo e a partes do corpo categorizadas como pertencentes a gêneros específicos

AC: exorsexismo, cissexismo, maldenominação, menções a reducionismo e a partes do corpo categorizadas como pertencentes a gêneros específicos

Noutro dia, eu almocei com alguém cis em um lugar sem banheiro neutro, e comentei que não queria ir em banheiros direcionados a gêneros binários. Eu falei que esperaria chegar em outro lugar para ir ao banheiro, já que minha vontade de ir não era nada urgente.

A pessoa me falou que, mesmo sendo mulher, já foi em banheiro masculino uma vez por ser mais vazio, e que eu não deveria deixar a marcação de gênero me impedir de usar o banheiro que eu quiser na hora que eu quiser. A questão que eu acho que a pessoa não entendeu é: são situações completamente diferentes.

Para que quem esteja lendo isso tenha noção do que estou dizendo aqui:

1. Em praticamente toda interação fora de casa, muitas vezes até com gente que me conhece, que foi recém corrigida e/ou que tem acesso ao meu perfil, eu sou maldenominade. Uma das primeiras palavras que usam para me chamar a atenção geralmente é senhora, senhor, menina, menino, moça ou moço. Eu uso sempre final de palavra e para me referir a mim, mas isto é quase sempre desconsiderado. Se eu estou junto com outra pessoa, mesmo que a outra pessoa não seja mulher ou use a/ela/a, o conjunto usado é frequentemente as/elas/as. A língua portuguesa é extremamente marcada, então o uso do final a aparece em praticamente toda frase, independentemente de eu estar de binder e/ou roupas da dita “seção masculina”. Se me leem como algo que não é mulher, me leem como homem.

2. Em praticamente qualquer aviso, rótulo ou discussão sobre corpos como o meu, termos como “da mulher” ou “sexo feminino” são utilizados. Todo produto relacionado com higiene vaginal ou menstruação presume que a pessoa usando o produto usa a/ela/a, e muitos são marcados como femininos ou para mulheres. A maioria é rosa, e muitos usam o símbolo de Vênus, que representa mulheres. Informações ou exames relacionados a seios, útero ou vulva também presumem mulheridade e a linguagem a/ela/a. Mesmo minha variação intersexo é descrita como algo que “ocorre em pessoas do sexo feminino”.

3. Em espaços separados por gênero, não existe seção que não seja para homens ou para mulheres, para pessoas femininas ou para pessoas masculinas. Existem coisas para todes, algumas vezes até chamadas de “agênero”, de “gênero-fluido” ou de “gênero neutro” (que são identidades específicas, e não termos adequados para se referir a todas as pessoas não-binárias ou para todo mundo, mas enfim), e existem coisas separadas. Banheiros, vestiários, cortes de cabelo, lojas de roupas e lojas de acessórios muitas vezes são classificades como pertencentes a uma ou outra categoria binária. Em certos casos, como a questão de lojas, até dá pra ignorar isso, mas considera-se que a exclusividade de gênero de banheiros e vestiários deve ser respeitada num geral. Além disso, admito que nem sei o que acontece quando uma pessoa não-binária vai num bar ou salão onde há preços diferentes dependendo do gênero binário ou da qualidade de gênero associada.

4. Espaços para pessoas não-binárias são poucos e limitados. Eu nunca vi um curso, um grupo de encontro ou o que for para pessoas não-binárias que fosse regular. Os que tecnicamente me incluem, e que nem tendem a ser espaços tão interessantes ou regulares, são: espaços “LGBT”, “trans”, “para mulheres e pessoas não-binárias” e “para mulheres e pessoas trans”. Em todos estes, geralmente estou no meio de um monte de gente binária que presume que também sou e que, novamente, não respeitam meus conjuntos de linguagem ou reclamam de “como é difícil” não usar conjunto nenhum ou usar neolinguagem. As poucas pessoas não-binárias que estão nestes espaços frequentemente são reducionistas e acham que tá tudo bem que o tratamento alheio sempre presuma que a pessoa seja basicamente homem ou basicamente mulher. Não adianta usar binder ou buttons trans com meus conjuntos de linguagem: ou me tratam como mulher cis ou (raramente) como homem trans. Ah, e nem todos esses espaços presumem que vai ter alguém querendo ir em um banheiro que não esteja marcado como “feminino” ou “masculino”.

A questão é: embora exista a questão de certas pessoas cis terem dificuldades em serem aceitas como do seu gênero por conta de características vistas como fora da norma, há uma gama muito grande de espaços, produtos e convenções sociais que não só aceitam os gêneros de pessoas cis, mas também os reafirmam constantemente como reais e naturais.

Como pessoa não-binária, eu não só não tenho a afirmação frequente do meu gênero (porque não faz sentido alguém advinhar meu gênero, ou lojas fazerem roupas para diversas identidades não-binárias específicas quando coisas não-binárias num geral venderiam mais, e coisas pra pessoas binárias vendem mais ainda, e por assim vai), mas também passo por tentativas constantes de erosão da minha identidade de gênero e da minha linguagem pessoal.

(Tal erosão não realmente muda a identidade de ninguém, mas muita gente aceita conjuntos binários ou tratamento binário mais por conta disso do que por uma vontade real de se categorizar de tais formas.)

Vivo em uma sociedade onde é simplesmente negado o meu direito de usar um conjunto de linguagem específico ou de ter meu corpo reconhecido como do meu gênero. Vivo em uma sociedade onde muitas vezes não são dadas nem opções livres a pessoas de quaisquer identidades de gênero.

Gostaria de ressaltar que nem estou defendendo que eu tenha que ter minha identidade de gênero validada constantemente, e sim que ela não seja invalidada constantemente. São duas coisas diferentes, embora pessoas cis muitas vezes não consigam entender a diferença.

Aqui vai um exemplo: expressar a leitura de um corpo como de alguém que usa o conjunto o/ele/o está validando a linguagem pessoal da pessoa que usa o/ele/o. Porém, se a pessoa não usar tal conjunto, isso está invalidando ativamente a linguagem pessoal da pessoa.

Agora, se nenhum conjunto de linguagem específico é usado para a pessoa, a pessoa não está sendo validada, mas também não está sendo invalidada. É essa a ideia de não presumir linguagem pessoal alheia, de usar um conjunto que não seja a/ela/a ou o/ele/o como neutro universal, e de não classificar características biológicas como femininas ou masculinas. Pessoas ainda estão livres para se classificarem individualmente como quiserem, mas, em um contexto onde não se conhece a pessoa à qual está sendo referida, não há nem validação e nem invalidação.

Finalmente, enfim, posso voltar à questão do banheiro.

Uma pessoa cis entrando no banheiro de outro gênero porque era o banheiro que estava vazio é uma escolha pessoal de invalidar o próprio gênero temporariamente por questões de praticidade (e possivelmente saúde). A mesma coisa se aplica se, por exemplo, uma mulher quiser comprar um produto feito para homens, ou se um homem quiser usar uma roupa que veio de uma loja marcada como feminina.

Porém, a minha entrada em um banheiro (ou outro espaço) binário é basicamente uma invalidação extra. É algo que eu estou escolhendo fazer ou me forçando a fazer que reforça que pessoas como eu não existem e/ou não devem ser respeitadas, em cima de todas as outras invalidações constantes que apontei ali em cima.

Se uma mulher cis entra num banheiro para homens, ela não precisa ter medo de deixar de ser tratada pela linguagem certa, de reforçar a ideia de que a identidade que ela diz que tem é falsa, e por assim vai. Mas se alguém está em cima do muro sobre respeitar a minha identidade, e a pessoa vê eu entrando em um “banheiro feminino”, usando “produtos de higiene feminina” e afins, isso reforça a sua visão de que o cissexismo está mais certo sobre como eu devo ser tratade do que eu, por mais que eu não tenha culpa em não existir um espaço ou produto que esteja marcado de forma mais inclusiva.

Observação final: Eu estou falando isso do ponto de vista de uma pessoa não-binária que é vista como mulher cis, cujas roupas muitas vezes também estão dentro dos padrões do que uma mulher cis vestiria. Quando se fala sobre banheiros e vestiários, há questões muito mais pesadas quando se trata de pessoas percebidas como homens entrando em “banheiros femininos”, ou de homens trans e pessoas não-binárias que querem usar os espaços marcados como masculinos sendo que “parecem mulheres”.