Pelo respeito à neolinguagem

Avisos de conteúdo: cissexismo, exorsexismo, exilinguismo (retórica contra neolinguagem)

Este texto presume conhecimento básico sobre questões de neolinguagem e de linguagem pessoal (clique nos links para aprender sobre). Se o que você procura é uma defesa mais educativa a favor do conceito, confira Os argumentos contra a neolinguagem e/ou Em defesa da neolinguagem.


Quero compartilhar isso aqui por conta de aparentemente ainda ser uma questão controversa, mas vamos lá:

Reclamar de neolinguagem é uma microagressão.

A reação de estranheza com palavras novas é natural. A estranheza com a neolinguagem em particular, porém, causa muito mais reações negativas do que gírias, nomes de empresas ou até mesmo estrangeirismos sendo importados para a língua portuguesa por questões de praticidade.

E, a questão é: neolinguagem não é só uma proposta teórica nova que ninguém usa. São construções que estão na língua portuguesa faz mais de uma década, ou até mesmo mais de duas, se formos contar um ou outro lugar usando @/el@/@ como linguagem genérica. Há vários textos e vídeos com pessoas usando neolinguagem e vários materiais explicando diferentes aspectos dela. Quem quer se acostumar ao menos com certos aspectos da neolinguagem tem a oportunidade de ir atrás disso.

Entendo alguém se surpreender com algum elemento que nunca viu, como um neopronome diferente de elu ou ile que alguém pede como parte de seu tratamento. Porém, o problema não é o sentimento, e sim reações como:

  • Verbalizar o quanto a linguagem de alguém é esquisita/feia;

  • Defender-se de nenhuma acusação feita, presumindo que a pessoa que pede tratamento contendo neolinguagem vai ser agressiva com qualquer deslize e querendo evitar isso por apontar a própria ignorância ao invés de ir atrás de preencher as lacunas em seu conhecimento;

  • Hipervigilância em cima de pessoas que pediram por ser tratadas com o uso de neolinguagem, apontando toda vez que cometem erros de digitação ou gramática ou toda vez que usam algum estrangeirismo como prova de que tais pessoas não deveriam julgar quem as maldenominam e/ou não pertencem em determinado espaço;

  • Reclamar da complexidade em explicitar artigo, pronome e final de palavra, sendo que são justamente tais elementos os mais usados na comunicação, mesmo por pessoas que reclamam que “não querem ter que estudar gramática”. Não é legal sair escolhendo o tratamento alheio de acordo com os gêneros gramaticais conhecidos e depois querer se safar das consequências de maldenominar alguém porque na verdade não tinha como saber de nada, né?

Em espaços cisdissidentes, já existe a noção de ter o mínimo de respeito pelas identidades alheias. Só pessoas transmísicas tendem a reclamar dos nomes escolhidos alheios por serem feios ou esquisitos. Presume-se que travestis e mulheres trans devem ser tratades por a/ela/a e que homens trans devem ser tratades por o/ele/o a um nível que apaga possíveis complexidades dentro de tais identidades e pessoas não-conformistas de linguagem.

Em teoria, aceita-se que pessoas não-binárias podem “usar linguagem neutra” (porque convenhamos que neolinguagem sem o objetivo de ser “neutra” acaba encontrando ainda mais resistência). Na prática, espera-se que todes nós também aceitemos a/ela/a ou o/ele/o, porque reinvindicar nossa não-binaridade dentro da linguagem é, supostamente, ou excludente de alguma forma, ou uma exigência impensável por conta de “ser novidade”.

Em espaços cisdissidentes, disforia e euforia de gênero são levadas a sério quando se trata de partes do corpo, nomes, documentos e conjuntos de linguagem dentro da língua padrão. Mas contra-argumentação ou chacota contra tratamentos que envolvem neolinguagem ou comentários como “mas eu não entendo porque alguém escolheria isso” não são julgades tão negativamente, sendo comum até o acolhimento do desconforto com a neolinguagem em detrimento da saúde mental de usuáries de neolinguagem que também são rejeitades no mundo cis.

O paralelo com formas de identificação cisdissidentes é óbvio. “A sociedade ainda não consegue reconhecer mais de dois gêneros, então você tem que viver como um deles”; “a maioria não vê você como alguém da identidade de gênero que você diz, e não faz sentido exigir que te reconheçam dentro dela”; “você tem que aprender a estar confortável por si só, e não exigir que outras pessoas te tratem como você quer”.

Porém, assim como pessoas cisdissidentes como um todo não desistiram de ser reconhecidas como membras de suas identidades de gênero reais, eu não vou desistir de exigir ser referide com um tratamento que me contempla. Assim como pessoas cisdissidentes em geral criaram espaços onde é impensável julgar a identidade de gênero alheia por métricas cissexistas, eu já administro espaços que aceitam conjuntos de linguagem diversos e que não toleram piadinhas sobre como a linguagem alheia é feia ou esquisita.

O que eu queria é que pessoas em outros grupos cisdissidentes tivessem vergonha na cara de desencorajar esse tipo de atitude, assim como outras manifestações de “senso comum” que beneficiam a cisnorma. Para quem não precisa da neolinguagem, há uma acomodação inerente em poder falar livremente do quanto ela é desnecessária e complexa demais para ser “aprendida”, mas isso deveria estar sendo questionado, especialmente em espaços não-binários.

Para quem sente falta de ser referide usando neolinguagem: eu garanto que há pessoas como você. Eu garanto que há pessoas que lhe respeitarão. Venha interagir com a gente!