Por um movimento explicitamente pró-neolinguagem

Para quem quer ver os pontos principais, eles estão sob "Demandas antiexorlinguistas".

Alguns conceitos

Para quem está caindo aqui de paraquedas: eu escrevi e distribuí diversos panfletos, textos informativos, vídeos e outros materiais sobre não-binaridade e neolinguagem desde 2016. Portanto, sugiro a quem ainda não sabe o que é não-binárie, trans, cisdissidente, a/ela/a, ê/elu/e ou outros tratamentos no modelo artigo/pronome/final de palavra ou linguagem pessoal, que os textos linkados sejam lidos. Alternativamente, este vídeo explica a maioria destes conceitos de forma resumida.

Agora, há alguns conceitos são tão pouco falados que não necessariamente possuem significados consistentes (até onde sei); outros são mais formalizados, mas menos utilizados.



Caso alguém queira me apontar que exilinguismo e/ou exorlinguismo sejam termos com definições fixas que diferem das citadas, estou aberte a tais correções.



  • Maldenominação: O ato de usar a linguagem errada para tratar alguém (como, por exemplo, usar ele ou macho para se referir a alguém que só usa o pronome ela e que não é homem ou algo adjacente a isso) ou algum grupo de pessoas (como, por exemplo, usar mulheres ou moças para se referir a um grupo de pessoas composto por pessoas que não são mulheres e não usam o final de palavra -a). É uma adaptação de misgendering que considera também que usar a linguagem pessoal errada não necessariamente é equivalente a errar a identidade de gênero de alguém;
  • Exilinguismo: Quaisquer formas de intolerância a flexões de gênero que saem da norma padrão da língua portuguesa (neolinguagem);
  • Exorlinguismo: A imposição de a/ela/a ou o/ele/o como os únicos tratamentos válidos. Todas as manifestações de exilinguismo são também exorlinguistas, mas exorlinguismo também cobre questões como intolerância contra quem não quer linguagem marcada, ou, se existirem tais casos, contra pessoas que usam ambos os conjuntos a/ela/a e o/ele/o, questões que não são cobertas por exilinguismo. A ideia do termo exorlinguismo é ser um equivalente a exorsexismo, a intolerância contra pessoas fora do binário de gênero, só que, neste caso, seria a intolerância a pessoas e formas de linguagem genérica fora do binário de linguagem;
  • AntiNCL: Quaisquer questões que afetam pessoas não-conformistas de linguagem. Ou seja, todas as manifestações de exorlinguismo quanto à linguagem pessoal acabam sendo antiNCL, mas homens que só querem ser tratadas por a/ela/a ou mulheres que só querem ser tratados por o/ele/o são questões só cobertas por intolerância antiNCL, e não por exorlinguismo. Ser a favor da linguagem mascunormativa também não chega a ser antiNCL por si só.
  • Linguagem mascunormativa: Descreve o uso de o/ele/o e termos associados com o gênero homem como linguagem genérica, isto é, usada para grupos mistos, pessoas hipotéticas ou afins. É possível ser a favor da neolinguagem ou do conjunto -/-/- para uso em tratamentos pessoais e ainda assim ser a favor da linguagem mascunormativa. Mascunormatividade é a imposição de que características vistas como masculinas são neutras/padrão, enquanto outras são marcadas ou desviantes, mesmo em contextos onde homens não estão envolvides.

Na maior parte dos casos, diferenciar entre formas de discriminação referentes às flexões de gênero pode não ser importante: “proibir a neolinguagem é um ato cissexista” não é exatamente uma afirmação incorreta, considerando que muitas vezes tal tipo de ataque tem como objetivo fechar brechas para que pessoas expressem não-binaridade, isto é, uma forma de cisdissidência, por meio da linguagem pessoal. Mas nem todas as pessoas cisdissidentes usam neolinguagem e nem toda consequência negativa de proibir a neolinguagem vai respingar somente em pessoas cisdissidentes.

Ao meu ver, tais termos estão posicionados da seguinte forma:

Diagrama de Venn com quatro seções: intolerância antiNCL (amarela), exorlinguismo (verde), exilinguismo (vermelha) e insistência na utilização de linguagem mascunormativa (ciano). Intolerância antiNCL sem nenhuma sobreposição: não respeitar uso de a/ela/a ou de o/ele/o caso não estejam “de acordo com o gênero” da pessoa. Intolerância antiNCL sobreposta com exilinguismo e exorlinguismo: não respeitar/reclamar de neolinguagem/sua pluralidade no contexto de linguagem pessoal. Insistência em linguagem mascunormativa sobreposta com exorlinguismo e exilinguismo: rejeitar neolinguagem para se referir a grupos mistos, pessoas hipotéticas ou afins. Insistência em linguagem mascunormativa sobreposta apenas com exorlinguismo: rejeitar a ideia de usar -/-/- (linguagem sem marcações) para se referir a grupos mistos, pessoas hipotéticas ou afins. Insistência em linguagem mascunormativa sem sobreposições: acreditar que o/ele/o é suficiente para se referir a grupos mistos, pessoas hipotéticas ou afins. Exorlinguismo sobreposto com intolerância antiNCL: não respeitar/reclamar de conjuntos como -/-/-, -/-/o, -/ele/a e outros não convencionais mas com flexões existentes dentro da língua no contexto de linguagem pessoal.



Nem todas as questões relacionadas com linguagem estão explicadas em um diagrama tão resumido. Por exemplo, existe a questão do uso da triforma todes, todas e todos: não é linguagem mascunormativa, mas também presume que todes se encaixam em uma das três flexões disponibilizadas ou que podem se encaixar em uma delas, e acata a insegurança binária em torno de materiais que só utilizam neolinguagem como linguagem genérica. Como outro exemplo, uma pessoa gênero-fluido que encontra empecilhos ao pedir para que usem ou le/ile/e ou ê/elu/e de acordo com o seu gênero no momento pode encontrar resistências que são mais relacionadas com a questão da troca do que com a questão da neolinguagem: isso é exilinguismo ou só exorlinguismo? São questões a serem discutidas.



Como usuárie de neolinguagem, tenho sentido um desejo crescente de espaços dedicados ao uso de neolinguagem de forma que não estejam necessariamente conectados com a não-binaridade. E é este o assunto do texto.

O descaso exilinguista em espaços não-binários (e trans, e LGBTQIAPN+ em geral)

Em comunicações públicas

O medo da neolinguagem para além de “não-binárie”

Vários grupos querem se ver como subversivos por não flexionarem a palavra não-binárie em questão de gênero gramatical (escrevendo, por exemplo, “pessoas não-bináries” ou “grupo não-binárie”), mas ainda não conseguiriam nem falar ou escrever algo como “elus são es minhes amigues” sem cair na mascunormatividade linguística ou em formas de contornar a necessidade da linguagem marcada.

“Falta de prática/convivência/base” é uma desculpa que serve para quem se descobriu não-binárie no semestre anterior e está recém entrando em contato com usuáries de neolinguagem, não para pessoas que se envolvem com comunidades não-binárias há vários anos. Muito menos para organizações compostas por múltiplas pessoas com a função de revisar textos antes de serem publicados.

Essa vergonha usada como justificativa para nunca falar ou escrever usando neolinguagem não deve ser usada como tal, mas sim como combustível para aprender. Aqui estão links para vídeos, imagens, textos, comunidades e ferramentas interativas para ajudar a entender como usar neolinguagem.

Uma pauta não-binária?

A neolinguagem geralmente é só considerada dentro do âmbito de acolher pessoas não-binárias. Embora, na grande maioria dos casos, pessoas que usam neolinguagem sejam não-binárias, não vejo uma preocupação do movimento não-binário (ou de movimentos que se dizem inclusivos da não-binaridade) em levantar muitas pautas relacionadas com linguagem. A ABRANB tem um parecer sobre linguagem e menciona a pauta explicitamente em sua síntese de pautas não-binárias, mas, até onde soube, não existiram:

  • Pesquisas amplas para descobrir quantas pessoas não-binárias usam conjuntos de linguagem que diferem de a/ela/a ou o/ele/o;
  • Pesquisas comparando a qualidade de vida entre pessoas não-binárias que priorizam neolinguagem, pessoas não-binárias que usam algum conjunto de linguagem “não óbvio” mas dentro da língua e pessoas que aceitam a linguagem que geralmente seria presumida socialmente;
  • Campanhas para o reconhecimento explícito de conjuntos de linguagem variados, de forma que vai além de um aceno vago à ideia de que algumas pessoas usam ê/elu/e ou algo parecido, mostrando que existem outras formas de tratamento individualizadas válidas;
  • Oferecimento ou busca por oficinas que ensinam a usar neolinguagem advindo de IBRAT, ABRANB, ABGLT, ABRAI ou outras organizações focadas em populações cisdissidentes. Há o curso da BRAVA (que foca em ensinar a usar ê/elu/e e -/-/- como linguagem genérica e não ensina a pensar a linguagem pessoal de forma mais diversa, fora que já é de uma plataforma cujo objetivo é oferecer aulas) e houve uma iniciativa temporária chamada Introdução A que reuniu vídeos sobre conceitos básicos relacionados à comunidade LGBTQIAPN+; todas as outras oficinas ensinando uso da neolinguagem tendem a ser esforços individuais, ou pelo menos não são divulgadas em espaços onde estou.

Meu ponto aqui não é dizer que a pauta da neolinguagem precisa ser centralizada dentro de espaços LGBTQIAPN+, trans e/ou não-binários, e sim que ela raramente é sequer considerada. E, quando é, ou tende a ser um assunto tratado de forma resumida e pouco representativa da diversidade da neolinguagem ou a inclusão tende a acontecer apenas porque algume usuárie de neolinguagem teve que lutar dentro da “sua comunidade” para que o assunto fosse destacado de forma séria.

A falta de divulgação de informações inclusivas sobre linguagem pessoal e neolinguagem

Também presencio um atrito quanto à disseminação de informações sobre neolinguagem. É fácil encontrar o Orientando ao pesquisar sobre quaisquer identidades de gênero e ver referências ao site por meio de quem quer falar sobre orientações ou identidades de gênero, então por que praticamente só encontro o modelo APF sendo usado nos espaços que modero? Por que a página neopronomes é mais visitada que a que explica o modelo artigo/pronome/final de palavra ou mesmo neoflexões, que contém muito mais detalhes úteis para quem tem dúvidas sobre como aplicar neolinguagem?

Se o modelo APF é tão indesejável por outres usuáries de neolinguagem, por que ninguém propôs outro? [Pronome]/[de + pronome] (como em “elu/delu”) é uma tradução mal feita que nunca vi ser utilizada de forma que subverte sua redundância (sendo que poderia ser, no mínimo, algo como “elu/sue”). Eu já vi formas reduzidas de APF (que removem artigo ou final de palavra), e, embora eu ache absurda a ideia de padronizar um artigo ou um final de palavra quando já existem tantas interpretações diferentes junto aos mesmos pronomes, a popularização de um sistema assim já me ajudaria muito em comparação com o quanto eu tenho que explicar para quem absorveu que qualquer parte do tratamento é “um pronome” para ser usado no lugar de ele ou ela.



Aliás, dela e dele não são pronomes, e sim contrações; já sua, minha, seu e meu são pronomes! Mas eles são possessivos, e não pessoais. Eu só espero que quem tenha caído na página de neopronomes do Orientando para “aprender sobre pronomes” realmente tenha aprendido quais partes do tratamento de alguém são realmente pronomes.



Enfim, é um sofrimento eu ter distribuído centenas de livretos com o texto Tudo, ou pelo menos muita coisa, sobre linguagem pessoal em eventos/locais relevantes e ainda ter que lidar com as mesmas pessoas que aprovaram a distribuição não terem aprendido nada com os livretos. Também não aconteceu de eu chegar em eventos ou grupos com pessoas da mesma cidade e encontrar pessoas que aprenderam com as técnicas descritas ali. E se nem esforços locais funcionam, na internet ainda é pior: praticamente ninguém compartilha textos ou vídeos de outras pessoas, especialmente se não são famosas ou se não são trabalhos feitos dentro da academia (os quais geralmente são bem rasos em questão de informar sobre linguagem pessoal), mesmo em grupos politizados.

Eu espero que o cultura enebê faça sucesso, e que mais pessoas se sintam à vontade para compartilhar seus trabalhos na rede qósmiques (e ter mais pessoas os espalhando a partir disso), mas o quanto é possível que isso realmente aconteça, quando temos uma maioria que não se interessa pelo assunto?

Mascunormatividade e retórica antiNCL ao falar de gente (majoritariamente) binária

Outra questão é que a neolinguagem ainda não está sendo aplicada como linguagem genérica em todos os aspectos mesmo em publicações de organizações que defendem sua existência. Por exemplo, “nossos opressores cis” ou “bilhonários” ainda são grupos de pessoas com linguagem mista, e portanto usar o/ele/o ainda reforça linguagem mascunormativa.

Também existe a ideia de que mulheres só podem usar a/ela/a e de que homens só podem usar o/ele/o, sendo que isso apaga experiências não-conformistas de linguagem e homens/mulheres não-bináries. Eu entendo que usar neolinguagem para falar de mulheres e homens pode confundir gente exorsexista e que preza um essencialismo de gênero onde é a conformidade de gênero que valida alguém ser mulher ou homem, mas a vida real é mais diversa do que isso e pessoas não-binárias já deveriam entender que linguagem e identidade de gênero são questões diferentes.

Finalmente, existe a questão de usar a biforma (“elas e eles”, “todas e todos”) quando presume-se que um grupo só contém pessoas binárias e conformistas de linguagem. Assim como a questão do parágrafo acima, acho que essa é uma concessão desnecessária a quem preza pela conformidade de linguagem, especialmente dentro de espaços que se propõem a ser inclusivos e contra normatividade de gênero.

Em grupos informais

Discriminação em grupos mais abertos

Além de espaços que modero (e olhe lá, porque já tive que banir gente por isso), quase não há lugares com discussões na língua portuguesa onde me senti bem-vinde como usuárie de neolinguagem.

Isso vem desde grupos que incentivam a “falar dos pronomes”, mas não sobre o resto do tratamento (i Oltiel também escreve sobre isso aqui), passa por pessoas que acham que podem escolher os elementos que uso por eu solicitar tratamento com elementos “neutros” (neolinguísticos) e passam a me maldenominar com neoartigos e neopronomes diferentes dos solicitados e vai até pessoas reclamando ou fazendo chacota por meus conjuntos de linguagem serem “estrangeiros”, “complexos” ou “novos” demais (sendo que uso -/eld/e desde antes da popularização de ê/elu/e e tal conjunto não requer o aprendizado de uma quantidade de elementos diferentes, apenas do conceito de não existir um “gênero gramatical neutro” engessado e mutualmente exclusivo dos outros que forem surgindo).

Este é um problema social geral que tende a ser ainda pior quanto menos usuáries de neolinguagem já existem em determinado espaço. Porém, administradóries de espaços não-binários (ou que incluem pessoas não-binárias) poderiam simplesmente ter políticas que punem tais atitudes e/ou incentivam a leitura de materiais básicos sobre linguagem pessoal (que pode incluir outros assuntos pertinentes também, como materiais que ensinam sobre identidades não-binárias diversas e retórica racista/capacitista/etc). Ao invés disso, tenho que explicar sozinhe com carinho e paciência sobre como é possível se acostumar com a suposta inconveniência de não me maldenominar só porque alguém quis ficar comentando merda ao invés de ir atrás do assunto por conta própria ou ignorar minha introdução e não se referir a mim por linguagem marcada.

Como falei em Um guia não-binário e autista para fazer amizades, a não-binaridade já tende a ser um fator que isola as pessoas. Mas há pouca aceitação de usuáries de neolinguagem mesmo dentro de espaços não-binários, e não é incomum eu ser xe únique ou ume des úniques usuáries de neolinguagem em determinado grupo trans e/ou não-binário, e ser xe únique que não aceita o pronome elu e/ou o pronome ile.

Também já presenciei em espaços que organizo reações negativas contra a presença de váries usuáries de neolinguagem, muitas vezes com presunções errôneas acerca do quanto seríamos agressives ou coercives quanto a determinadas questões apenas pela utilização da neolinguagem em tais espaços.

Falta de valorização de outres usuáries de neolinguagem

A disseminação de questões de linguagem pessoal também não tende a ocorrer em espaços mais casuais, onde não é incomum aparecerem pessoas que me agradecem quando divulgo materiais relacionados com linguagem porque “queriam aprender e não sabiam onde achar” (mesmo provavelmente não sendo nem a primeira vez que eu publico tais links no mesmo grupo). Também praticamente nunca vejo pessoas trazendo recursos relacionados com linguagem quando há discussões sobre o assunto, embora já tenha visto uma pessoa divulgando o testador de conjuntos em seu Tumblr pessoal.


Aliás, eu nem sei qual material as pessoas tendem a preferir. Já publiquei vários guias de como usar APF, dos mais resumidos aos mais completos, e também existem guias que não escrevi, como a página Neolinguagem em Blogue Alternative, este Carrd também chamado Neolinguagem e Lista de conjuntos populares. Mas não só não tenho feedback muito diferenciado, como também não vejo um desses recursos ser mais referenciado ou elogiado do que outros.



Também não é incomum eu receber relatos de outras pessoas que navegam por outros espaços não-binários ou trans que suas linguagens pessoais foram desrespeitadas. Usar neopronome é foda, menine… é um texto de 2018, mas ainda é aplicável: sei de relatos mais recentes (dos últimos dois anos) de pessoas tendo dificuldades de achar outres usuáries de neolinguagem, tendo seus tratamentos ignorados ou assim por diante.



Edição (25/11/25): Ironicamente, menos de duas horas depois de eu ter publicado este texto, Oltiel fez esta postagem relatando que em um requerimento de um formulário que éli foi preencher só tinham quatro opções de pronomes (ela, ele, elu, ile), sem nem mesmo uma opção de “outro”, a qual havia sido providenciada em outras perguntas.



A ignorância acerca das questões de linguagem é valorizada: “a maioria não vai adotar esses termos novos”/“ninguém tem a obrigação de estudar isso”, o que justifica não olhar ou repassar quaisquer recursos que ensinam sobre linguagem pessoal (ou neolinguagem num geral), e colocar pessoas que utilizam neolinguagem (ou conjuntos como -/-/-) como frescas e/ou elitistas. São pessoas que buscam comunidades para combater o isolamento que passam por serem pessoas fora das normas, mas que não se importam em disseminar a intolerância contra pessoas que têm necessidades diferentes das suas.

As defesas isentonas da “linguagem neutra”

O que o termo “linguagem neutra” representa?

O termo linguagem neutra já foi, ao menos ao meu ver, fundamentalmente pró-neolinguagem e contra a mascunormatividade da língua padrão. Este guia de 2014 fala sobre “linguagem oral não-binária ou neutra”, e inclui diversas opções de pronomes e outros elementos. Aprender a usar -/-/- era importante para a pauta da linguagem neutra, sim, mas para situações onde usar neolinguagem poderia prejudicar uma pessoa, ou mesmo para não ter que usar linguagem marcada para pessoas desconhecidas, não como uma alternativa permanente a aprender a usar le/elu/e, ou ê/ile/e, ou i/ili/i, ou qualquer outra linguagem que alguém pode escolher para usar de forma genérica e pessoal.

Mas aí estamos em 2025, e ainda temos pessoas:

  • Considerando que o/ele/o já é o gênero neutro na língua portuguesa, e que, por isso, outras “formas de linguagem neutra” são desnecessárias;
  • Colocando que proibir flexões alternativas de gênero não impede de usar linguagem neutra, porque é possível fazer contornos (ou seja, -/-/-);
  • Falando que “a linguagem neutra não está desenvolvida” por haverem “opções demais”, sem existir um padrão acatado por todes.

Ao meu ver, isso é um problema.

Eu entendo que nem todes gostam do termo neolinguagem. Inclusive falei sobre desejar ter escolhido outro termo, porque o que eu achava óbvio e coerente virou, para outras pessoas, uma diminuição do conceito e uma limitação a ser algo que nunca será comum na sociedade. Se outras pessoas preferirem adotar plurilinguagem, exilinguagem ou linguagem dissidente ou o que for, sintam-se livres para isso.

Mas o termo “linguagem neutra” já está totalmente esvaziado. Ele cria uma expectativa de um único gênero gramatical rígido que difere do “feminino” e do “masculino” (e já venho dizendo há tempos o quanto descrever linguagem por meio de características de gênero é algo problemático). Ao mesmo tempo, ele é usado para denotar a forma correta de se referir a grupos mistos, pessoas hipotéticas e afins. E ele também é usado para descrever todas as formas de neolinguagem, assim como para justificar a maldenominação de pessoas como eu.

Atualmente, uso os termos linguagem genérica e neolinguagem justamente para não haver essa falha na comunicação. Descrever conjuntos diferentes também é importante para denotar a “linguagem neutra” que pode estar ou não estar sendo usada em determinado contexto.

As defesas exilinguistas da “linguagem neutra”

Como falei, o termo “linguagem neutra” atualmente tem, muitas vezes, a conotação de ser um gênero gramatical único onde todas as propostas acerca de seus elementos são intercambiáveis. Isto resulta em maldenominação e em ataques gratuitos contra usuáries de neolinguagem que não usam os elementos preferidos de quem defende a uniformização de um gênero gramatical codificado como neutro.

Como já disse em Quer incluir pessoas não-binárias na língua portuguesa? Priorize o respeito à linguagem pessoal!:

(…) A integração de um gênero gramatical que se propõe a ser neutro dentro da língua padrão será um passo à frente tanto em relação a facilitar [combate à linguagem mascunormativa] quanto em relação a fornecer um conjunto de linguagem pessoal visto como neutro mas amplamente aceito, o qual pode assim ser usado por pessoas não-binárias que só querem ser referidas de qualquer forma neutra/genérica ou para se referir a crianças que ainda não desenvolveram suas próprias preferências de linguagem pessoal de forma que não impõe a elas conjuntos de linguagem binários de forma geralmente cissexista e diadista.

Porém, o foco único em padronizar um gênero gramatical neutro muitas vezes deixa de lado a necessidade mais importante de não maldenominar pessoas cisdissidentes e/ou inconformistas de linguagem. De fornecer o respeito básico do uso de pronomes, artigos e outras partes de um conjunto de linguagem que cada pessoa quer que sejam utilizades para si, assim como quem usa a/ela/a ou o/ele/o e possui certa aparência aceitável dentro da sociedade cissexista tem seus conjuntos de linguagem respeitados.

(…)

Só que o que vejo em debates acerca de qual deve ser o novo gênero gramatical neutro ou se deve existir um novo gênero gramatical neutro é uma falta de consideração com pessoas que dependem de neolinguagem não (só) como uma forma de expressar inclusividade, mas (também) como uma forma de ter conjuntos de linguagem com os quais não se sentem maldenominadas; de ter conjuntos de linguagem que sentem que as representam quando os conjuntos dentro da língua padrão se mostram insuficientes.

Talvez isso pareça fútil para pessoas binárias – especialmente cis – as quais possuem gamas enormes de formas de encontrar validação interna e externa para suas identidades de gênero. Porém, no caso de pessoas não-binárias, muitas vezes a linguagem pessoal é uma das únicas formas que temos para buscar euforia de gênero ou combater inseguranças em relação a não sermos vistes da forma certa. E maldenominação não deixa de poder machucar só porque uma pessoa trans está deixando de ser referida por um conjunto como ê/elu/e ou ly/ily/y ao invés de a/ela/a ou o/ele/o.

Ainda vejo pessoas tentando resolver o suposto problema da neolinguagem ser ampla demais, de não haver um pronome pessoal único, um artigo definido único ou mesmo uma flexão única que pode ser forçada em cima de todas as pessoas que não usam a/ela/a, o/ele/o ou -/-/-. Eu entendo que existem pessoas não-binárias que não se importam (e/ou que não conhecem a diversidade da neolinguagem), de forma que pedem para ser tratadas por “pronomes neutros”/“linguagem neutra” sem especificar o que querem dizer com isso, e incentivo então a perguntar pelo que querem ser tratadas de forma mais detalhada. Mas e nós, que não escolhemos nossas linguagens pessoais por serem “neutras”, e sim por serem representativas de formas mais específicas de não-binaridade, ou mesmo de outros aspectos, como alterumanidade? Para mim, pessoalmente, seria tão agonizante ser referide apenas com linguagem vista como ambígua ou neutra (porque um conjunto desses também seria incentivado como linguagem genérica) quanto ser referide com linguagem vista como feminina ou masculina.

Eu não me importo com a pauta de inserir um gênero gramatical codificado como neutro em alguma reforma oficial da língua portuguesa. No entanto:

  1. Essa inserção não deve ser utilizada como uma forma de exterminar outras variações neolinguísticas que pessoas utilizam como linguagem pessoal.

  2. Considero mais importante lutar, ao menos em longo prazo, para a abertura de flexões gramaticais, da mesma forma que nomes próprios podem ser qualquer coisa sem ir contra as normas da língua. Isto não difere muito da questão de gênero/“sexo” em documentos: a curto prazo, tudo bem se contentar com a inserção de uma ou duas opções novas nos sistemas que já existem, mas é fundamental reconhecer que documentos não deveriam conter campos de gênero/sexo e que não são documentos oficiais que determinam que identidades de gênero alguém realmente tem ou não tem fora daquele contexto.

Demandas antiexorlinguistas

Ficam, então, as seguintes considerações para as equipes de espaços que têm o objetivo de combater cissexismo e imposições de normas de gênero, independentemente se forem espaços de convivência que querem ser inclusivos ou grupos com propósitos ativistas ou educacionais:

  1. O uso de linguagem genérica consistente no combate à mascunormatividade e à binaridade da língua, seja por uso de linguagem sem marcação (-/-/-) e/ou por uso de algum conjunto que envolve neolinguagem com pronúncia fácil e que minimiza conotações de parecer a/ela/a ou o/ele/o. Caso enfatizar pessoas que usam a/ela/a como separadas seja uma questão vista como relevante, sugiro biformas que utilizem a neolinguagem como genérica para o resto das pessoas consistente durante o texto inteiro, como em “sejam bem-vindas e bem-vindes todas as trabalhadoras e todes es trabalhadóries”. Pessoalmente, não vejo a necessidade de tal redundância, mas, se for para ter redundância, que ela não seja exorsexista ou mantenha o mito de que só existem três conjuntos de linguagem válidos. Ninguém vai achar que o conjunto o/ele/o está sendo abolido como linguagem pessoal se ele não aparecer.

  2. O incentivo a aprender a usar -/-/-, tanto como linguagem genérica quanto para se referir a pessoas específicas, mas de forma que não minimize a neolinguagem ou a importância de respeitar a linguagem pessoal alheia. É importante poder falar com atendentes, responder comentários na internet ou ter outras interações breves sem precisar usar linguagem marcada, mas sempre fazer contornos ao se referir a ume parceire ou amigue depois de meses/anos de interação não é algo a se comemorar ou incentivar.

  3. A separação dos conceitos “pronome” e “gênero gramatical”. Não adianta passar a chamar gêneros gramaticais de pronomes para separá-los do conceito de identidade de gênero e continuar com a lógica de que alguém que usa o pronome tal precisa usar a flexão tal ou o artigo tal (ou vice-versa). Existe gente usando pronome elu que usa artigo ê, que usa artigo le, que usa artigo o, que não usa artigo; existe gente usando final de palavra -e que usa pronome elz, que usa pronome ily, que usa pronome ael; e assim por diante. Vários conjuntos de linguagem “misturam” gêneros gramaticais, e é por isso que não acho que faz muito sentido chamar conjuntos de linguagem pessoais de gêneros gramaticais, mas não adianta trocar o nome para tratamento ou pronomes se a mesma lógica rígida vai ser cobrada.

  4. A disseminação do modelo artigo/pronome/final de palavra, ou, alternativamente, de qualquer outro modelo que pelo menos separe e ajude a explicitar pronomes e finais de palavra como elementos independentes um do outro. Isso significa se apresentar com tal modelo, colocar ele em perfis, pedir para que pessoas os preencham em formulários e não voltar atrás no primeiro sinal de que as pessoas em volta estão contentes falando que usam “o masculino” ou “ile/dile” ou afins.

  5. A defesa da abertura de gêneros gramaticais para além de um único “neutro”. Isso significa que guias não deveriam se limitar a ensinar “a linguagem neutra” sem ressaltar que existem diversos conjuntos de linguagem e múltiplas formas de lidar com flexões irregulares, de forma que outras pessoas não estão erradas por pedir para ser tratadas por mi ao invés de minhe ou por usar neopronomes pessoais diferentes de elu. Tudo bem fazer uma recomendação específica em um documento rápido, especialmente em questão de linguagem genérica; não está tudo bem agir como se toda a neolinguagem fosse intercambiável em todas as situações e apenas determinada forma devesse ser tratada como correta. Além disso, tentativas de tornar um “gênero gramatical neutro” oficial precisam reconhecer que nem todes es usuáries de neolinguagem vão passar a adotá-lo, especialmente como linguagem pessoal.

  6. Combate a chacotas e comentários negativos contra usuáries de neolinguagem ou elementos usados como neolinguagem. Uma pessoa se introduzindo com determinado tratamento não deveria ter que lidar com comentários falando de como a aplicação correta de tal tratamento é feia, esquisita, ridícula e/ou inutilizável. Isso significa ter aliades nos defendendo em conversas e equipes de moderação tomando ações contra tais atitudes. Se alguém se apresentar com um conjunto impronunciável/complicado para programas que leem telas, como, por exemplo, zhzhz/🌈💜💚/@, faz sentido pedir um conjunto auxiliar ou conferir se a pessoa está trollando, mas pronomes como elz, elf ou ild não são trollagem ou impronunciáveis só por terem duas consoantes seguidas (uma delas com som de vogal) e/ou por não serem elu ou ile.

  7. Combate a desleixos de concordância exclusivos à neolinguagem. Falar “o meu professore” sobre alguém que só usa ê/elu/e ainda é maldenominação, e comunidades que buscam defender usuáries de neolinguagem precisam deixar de ser permissivas desde que haja uma ou outra “tentativa” de vez em quando.

  8. Criação de espaços específicos para falar de questões de linguagem e/ou focados em pessoas NCL em contextos relevantes. Isso significa formar grupos específicos em organizações e comunidades que são separados de grupos não-binários ou trans, especialmente se estes já demonstram descaso com questões de linguagem. Também significa considerar incluir painéis, aulas ou afins sobre questões de linguagem dentro de eventos que buscam representar várias formas diferentes de identidades hetero/cisdissidentes, e parar de chamar pessoas não-binárias aleatórias que mal utilizam neolinguagem no dia-a-dia para realizar apresentações ou opinar sobre o assunto como se tal nível de representatividade e autoridade fosse satisfatório.


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