Definições importantes
- Exorsexismo: Um subtipo de cissexismo que afeta pessoas que não são nem 100% homens e nem 100% mulheres. Exorsexismo inclui apagamento de outras possibilidades identitárias em histórias, exemplos e discursos, chacota e problematização excessiva quando se trata de questões referentes à reinvindicação de experiências fora do binário de gênero e descrença quando pessoas se abrem como não-binárias, gênero-fluido, xenogênero ou de outras identidades fora do binário, entre várias outras questões. Um texto inteiro explicando o que é exorsexismo pode ser encontrado aqui.
- Maldenominação: O ato de tratar alguém por identidade de gênero ou linguagem comumente relacionada a esta questão (como nomes, artigos e pronomes, por exemplo) de formas que a pessoa não gostaria de ser tratada, independentemente de ter sido de propósito, por acidente ou por conta de uma presunção cisnormativa. Por exemplo, se uma pessoa transfeminina chamada Maria que usa a/ela/a é chamada de “um rapaz”, tratada pelo pronome ile ou se alguém coloca o nome que ela deu numa base de dados como Mariano por “não parecer Maria”, estes são atos de maldenominação.
- NHINCQ+: Não-Hétero, Intersexo, Não-Cis, Queer e afins. Sigla criada para ser amplamente inclusiva e ter uma pronúncia prática (nhin-quê-mais).
Introdução e ressalvas
Muito se fala sobre uma “epidemia de solidão”, tanto das gerações mais novas quanto de homens, seja para validar, invalidar ou tentar explicar de onde vem essas noções. Anos antes disso, também lembro de várias publicações falando da solidão da mulher negra (embora esta seja frequentemente discutida mais em questão de relacionamentos românticos), e de discussões acerca de como pessoas arromânticas lidam com não ter parceires.
Pessoas não-binárias muitas vezes já lidam com tais questões, por conta das intersecções que fazem parte; e, às vezes, também por conta de intersecções como a presença de neurodivergências que afetam a capacidade de formar e/ou manter relacionamentos de quaisquer tipos. Em adição a isso, nos abrir como não-bináries nos abre para o julgamento de uma sociedade exorsexista, de forma que a presença de muitas pessoas que considerávamos família, amizades ou afetos passa a ser tóxica com a insistência de que nossa não-binaridade é irrelevante, inexistente ou deve se conformar às suas expectativas.
Muitas pessoas não-binárias internalizam isso: que “é normal” pessoas que gostam de alguém quererem decidir qual linguagem usar para a pessoa, independentemente de seus desejos; que “é normal” alguém precisar de anos para se acostumar com um novo nome ou tratamento; que “é normal” maldenominar pessoas não-binárias pelas costas; que “é normal” se relacionar com pessoas que dizem só sentir atração pelo gênero imposto ao nascer de alguém não-binárie e que se recusam a usar qualquer orientação aberta ao fato de sentirem atração por pessoas não-binárias. “É normal” no sentido de ser comum, mas estas são expressões exorsexistas que deveriam ser questionadas e combatidas, não tratadas como normas sociais inevitáveis e imutáveis.
Mas e então, o que fazer para construir relacionamentos novos sem essa bagaagem?
Existem, obviamente, várias formas de se aproximar de pessoas novas, que vão servir para pessoas com circunstâncias de vida diferentes. Ir a eventos físicos pode não ser uma opção para pessoas que são menores de idade, que possuem determinadas deficiências ou que moram muito longe de qualquer evento inclusivo de pessoas não-binárias, por exemplo. Pessoas com celulares antigos quase sem espaço não vão ter a possibilidade de instalar uma série de aplicativos de relacionamento, como outro exemplo.
Também existem pessoas não-binárias com necessidades diferentes das minhas. Sei que existem pessoas que não se importam em ser vistas como basicamente homens ou mulheres trans, ou que não possuem qualquer preferência acerca de linguagem pessoal: isso pode abrir possibilidades como, por exemplo, frequentar espaços trans ou LGBTQIAPN+ que não seriam amigáveis com pessoas usuárias de neolinguagem ou que não pretendem realizar processos de transição física.
Tenho a intenção de explorar algumas possibilidades diferentes neste texto, mas ele é baseado nas minhas próprias experiências. Sou ume usuárie de neolinguagem xenogênero e autista; mas também moro na maior cidade do Brasil, não sou cegue ou surde, minha dor crônica não me impede de sair de casa e tenho condições financeiras para ter acesso contínuo à internet.
A parte do autismo é relevante aqui porque eu vou tentar elaborar melhor sobre como achar pessoas e começar conversas do que só apontar onde é possível achar pessoas não-binárias. Minhas sugestões serão a partir do ponto de vista de que formas de puxar conversa que eu considero sensatas, de forma que pessoas alistas (não autistas) talvez não entendam a necessidade. A parte da não-binaridade é relevante porque dificilmente ir a um evento social aleatório do bairro, entrar em fandoms ou fazer um curso ou voluntariado serão opções que resultarão facilmente em achar pessoas que respeitem identidades não-binárias; o texto foca em onde achar pessoas não-binárias.
Utilizando a internet
A internet é mais ampla do que redes sociais convencionais, as quais podem ser úteis em alguns pontos mas limitantes em outros. Ao contrário do que dita o imaginário de muites que estão nelas, nem todas as pessoas possuem contas nelas ou prestam atenção em suas linhas do tempo.
É possível pesquisar por pessoas com base em certas palavras-chave, e tentar puxar conversas com essas pessoas caso haja algum interesse em comum, mas uma busca mais profunda não precisa se limitar a isso.
Muitas pessoas estão em comunidades não-binárias dentro de aplicativos como WhatsApp e Discord, os quais oferecem um pouco mais de privacidade em comparação com publicações pesquisáveis no DuckDuckGo ou Google. Algumas destas comunidades são divulgadas via redes sociais, ou até mesmo sites próprios, então não é impossível achar algumas pesquisando especificamente por grupos (e não só por pessoas não-binárias em geral).
A publicação Comunidades e espaços NHINCQ+ inclusives de orientações, identidades de gênero e conjuntos de linguagem incomuns lista alguns espaços relevantes, como a rede social colorid.es e o fórum do site Orientando; r/naobinarie e r/transbr são subreddits relativamente populosos onde também é possível achar pessoas não-binárias (embora r/transbr tenha uma regra contra convidar pessoas para formar grupos, o que pode ser relevante ter em mente ao tentar usar o espaço para conhecer pessoas).
Muitos blogs são moderados apenas por uma pessoa, ao invés de uma equipe, mas, se você gosta da escrita de alguém, é possível ir comentando nas publicações da pessoa (sempre tentando se manter no assunto de cada publicação) e eventualmente pedir um contato mais direto, ou perguntar se a pessoa tem alguma dica para achar amizades dentro de certo nicho. Muitos blogs também oferecem links de contato direto com sues autóries, mas os comentários podem ser uma opção preferível para quem não quer se registrar nas redes sociais providenciadas, dependendo do caso.
Existem também aplicativos e sites de relacionamento, como Lex, Taimi, t4t, AceSpace e FetLife. Até onde sei (e pelas minhas próprias experiências), é muito fácil ser ignorade nesses espaços, mas também existem pessoas que conseguiram amizades por eles.
Eventos no mundo físico
Em geral, adultes com acesso a cidades populosas podem optar por conhecer pessoas não-binárias pessoalmente em eventos abertos. Os métodos citados na seção acima ainda podem ser relevantes para encontrar tais eventos, mas também é possível conhecê-los dentro de espaços como universidades, centros culturais, centros de referência/cidadania ou associações NHINCQ+ ou mesmo estabelecimentos NHINCQ+.
Alguns eventos tentam ser para toda a população “trans” ou “LGBT”, de forma que a aceitação de identidades não-binárias é ambígua. Outros eventos citam não-binaridade explicitamente na sigla ou descrição, mas não são centralizados em questões não-binárias. Finalmente, existem eventos que centralizam pessoas não-binárias, como os eNBontros.
A aceitação de pessoas não-binárias - e mesmo de quais tipos de pessoas não-binárias - vai variar de grupo para grupo, especialmente se os eventos não tiverem não-binaridade como ponto central. Os níveis de ignorância e discriminação podem variar bastante. Eu acho que vale a pena arriscar ir ao menos uma vez em algum evento que parecer interessante, para ao menos descobrir com certeza se certo espaço é exorsexista ou não. É possivel que hajam outras pessoas não-binárias lá e que fique tudo bem. E dificilmente os discursos de ódio vão partir para violência física: no pior dos casos, é só ir embora depois de maldenominação, perguntas invasivas e/ou comentários passivo-agressivos sobre como certas identidades são besteira.
Enfim, é possível pesquisar por termos como “coletivo não-binário”, “encontro não-binário”, “grupo para pessoas não-binárias” e “evento sobre não-binaridade” em sites/aplicativos de busca, acompanhados do nome de uma cidade ou de uma região. Mesmo que só seja possível, por exemplo, encontrar o nome de um coletivo em uma notícia ou em um artigo acadêmico, é possível tentar entrar em contato via e-mail ou redes sociais perguntando se existem eventos acontecendo na região. Se não houver nenhuma atividade não-binária, é possível procurar por atividade trans, e, se isso não funcionar também, é possível usar termos como queer ou LGBT. Recomendo dar preferência a eventos que utilizem e/elu/e ou outro conjunto envolvendo neolinguagem como linguagem genérica; nem sempre isso significa que respeitarão todas as formas de não-binaridade, mas é um indicador melhor do que quem está usando o/ele/o, a/ela/a ou triforma para falar de grupos mistos e/ou d.
Existem eventos mais no estilo painel, onde uma pessoa ou um grupo de pessoas disserta sobre certo assunto. Ainda acho que pode valer a pena ir em tais eventos, porque mesmo que parte das informações possam ser repetitivas ou desinteressantes, o lugar ainda poderá estar reunindo pessoas não-binárias e aliadas, com quem pode ser possível puxar assunto após o evento. Obter contatos e referências das pessoas falando no painel também pode ser útil.
Também existem feiras para pessoas NHINCQ+ onde é possível conversar com es vendedóries (dependendo do quanto o espaço estiver vazio). Esta pode ser outra forma de obter contatos de pessoas não-binárias que moram na mesma região.
Mas, obviamente, as oportunidades ideais para conhecer pessoas serão as de grupos de conversa. É possível comparecer neles mesmo se o assunto não for totalmente compatível com determinadas experiências: por exemplo, uma roda de conversa sobre não-binaridade e assexualidade provavelmente ainda será aberta à presença de pessoas não-binárias alossexuais, e ainda provavelmente será possível trocar experiências e conhecer pessoas mesmo fora do âmbito da assexualidade.
O que evitar
Por mais que etiqueta seja uma questão vista como elitista ou capacitista, e que eu recomende ter boa fé ao interagir com outres, pode ser relevante refletir acerca de qual será a primeira impressão das outras pessoas com base na linguagem utilizada.
Aqui estão alguns textos que já escrevi com recomendações de como falar sobre identidades NHINCQ+ ou de que posicionamentos são comuns em comunidades que tentam ser inclusivas de todas as identidades NHINCQ+:
- Um guia introdutório para comunidades NHINCQ+ inclusivas
- Etiqueta de espaços LGBTQIAPN+
- Guia de estilo e tratamento
- Tudo, ou pelo menos muita coisa, sobre linguagem pessoal (especificamente sobre tratamentos gramaticais)
Nem todas as pessoas vão estar cientes dos mesmos valores ou concordar com eles. Há pessoas que não vão se importar com o uso de “os não-binários” ao invés de “es enebês” ou de “as pessoas não-binárias”, por exemplo, mas cada escolha de linguagem pode atrair ou afastar certas pessoas.
Outra questão na qual quero tocar é a de perguntas repetitivas ou invasivas. Você estaria confortável com uma pessoa que você não conhece fazendo as perguntas ou os comentários que você pensa em fazer? Você se sentiria igualmente confortável com a décima, vigésima ou centésima pessoa aleatória vindo com a mesma dúvida, piada ou afins?
Há várias questões que são pesquisáveis. Por exemplo, esta lista de identidades não-binárias, esta lista de orientações e esta lista de termos juvélicos são bons lugares para ter uma ideia do que significam palavras como gênero-fluxo, demissexual, tríxen ou diamórique, e vários desses termos possuem páginas próprias com exemplos e fontes. É possível ler sobre segunda puberdade com testosterona aqui, e sobre segunda puberdade com estrogênio aqui; a não ser que exista alguma questão particular que você tem em comum com certa pessoa, não há a necessidade de contatar alguém só para saber que mudanças corporais podem ocorrer com terapia hormonal. Propostas diversas de neopronomes e neoflexões existem pelo menos desde 2014, o primeiro guia para o modelo APF foi publicado em 2016 e já existem várias explicações sobre o modelo APF e defesas de múltiplas formas de neolinguagem em diversos formatos, o que torna ignorância acerca da existência de diferentes conjuntos de linguagem cada vez mais preocupante e difícil de tolerar.
Ninguém nasce sabendo, mas ir perguntar para alguém em particular sobre uma informação facilmente acessível ou excessivamente íntima - ou pior, comentar sobre como tais experiências são esquisitas ou engraçadas - pode passar a impressão de desinteresse e/ou desrespeito, possivelmente custando amizades. Curiosidade legítima pode ser informada com contexto maior: por exemplo, é possível perguntar “eu estou em dúvida sobre ser não-binárie e tomar testosterona porque todo mundo só me vê como mulher mas também não quero que me vejam como homem, como faço para superar isso” ao invés de “como assim você é não-binárie e faz terapia hormonal”.
É especialmente importante se atentar a não se aproximar de alguém por meio de criticar ou questionar partes marginalizadas da identidade da pessoa: por exemplo, puxar conversa falando sobre odiar rótulos para uma pessoa poligênero, sobre como é difícil se acostumar com neolinguagem para alguém que pede para ser tratade de forma que envolve neolinguagem ou sobre como não há sentido em adotar qualquer orientação mais incomum que bissexual para uma pessoa trixenromântica e mirsexual pode custar a vontade dessas pessoas de interagir com você. E aí quem vão sobrar são as pessoas exorsexistas (independentemente de reconhecerem o próprio exorsexismo ou não), que em teoria seriam as que alguém não-binárie atrás de amizades novas que não minimizariam sua identidade prefeririam evitar.
Esta questão também vale quando se trata de outras questões não relacionadas com a não-binaridade. Isso inclui, por exemplo, demonstrar “tara” por pessoas de certa raça, fazer alguma piada tirando sarro da religião ou nacionalidade da pessoa ou imediatamente tentar tirar dúvidas sobre como funciona a deficiência de alguém. Ser não-binárie não garante a boa vontade de outras pessoas em arcar com cargas derivadas de outros eixos de privilégio e opressão.
Também não recomendo enviar conteúdo discriminatório de qualquer tipo para alguém que não consentiu previamente a isso. Se algo fez alguém sentir mal, para quê espalhar? Se alguém não está pagando para tal serviço, por que cobrar uma explicação ou reação de uma pessoa marginalizada sobre algo que a afeta? Apontar como outras pessoas são piores - mas espalhando suas mensagens mesmo assim - não é uma boa forma de construir amizades.
Em adição a isso, acredito que seja útil evitar perguntas abertas que não são muito informativas sobre suas intenções, especialmente online. Por exemplo:
- Tudo bem? — Está mais para um cumprimento do que uma pergunta. Conheço muites que nem responderiam, não entendendo o que você quer ou mesmo se você é alguém real ou algum robô spammer tentando se passar por alguém real antes de enviar alguma loja ou tentativa de golpe. Ao invés disso, tente apenas começar sua mensagem de tal forma, mas já explicar suas intenções.
- Quer ser minhe amigue? — É uma pergunta esquisita para fazer para alguém desconhecide. Recomendo trocar para algo como “você aceitaria conversar sobre [assunto em comum] comigo” ou para uma introdução aconpanhada de pergunta direta, como “oi, eu vi seu perfil e vi que você também gosta de [assunto], o que você achou de [novidade relacionada ao assunto]? Eu achei [opinião própria].
- Posso fazer uma pergunta? — Não só você já está fazendo, como também é impossível entender quaisquer intenções a partir disso: se é uma questão de entender algum processo por querer passar por ele, de querer argumentar contra a identidade da outra pessoa ou de fazer uma pergunta mais pessoal. Sugiro “posso fazer uma pergunta sobre [assunto]”, de forma que pode seguir de algum contexto (por que essa pergunta está sendo feita para esta pessoa e/ou qual o interesse pessoal na resposta). Mesmo sem contexto adicional, o fato da pessoa saber qual o assunto ajudará a decidir se vai querer responder ou não.
Além disso, é importante manter em mente que, com a exceção de relacionamentos que envolvem contratos, transações financeiras ou outras responsabilidades legais, ninguém tem a obrigação de dar atenção para ninguém. Existem pessoas que vão ignorar mensagens. Existem pessoas que vão dizer que não se interessam em conversar. Existem pessoas que não têm tempo ou energia para responder imediatamente ou mesmo no mesmo dia (mesmo que estejam publicando outras atividades online). Existem pessoas que não estão todo dia no Instagram/Discord/Reddit/outro lugar pelo qual você fez contato. E isso pode significar que você pode ter errado em certa questão, mas este não é necessariamente o caso.
Às vezes, pessoas têm necessidades diferentes: uma pessoa quer conversar no máximo uma vez por semana, outra se sente mal se suas mensagens não são respondidas no mesmo dia. Uma pessoa gosta de ficar mandando vários links, enquanto a outra gostaria de se comunicar mais por conversas mais diretas. Uma pessoa quer se comunicar por áudio, a outra tem dificuldades para ouvir ou prestar atenção e prefere comunicação por texto. Algumas dessas necessidades podem ser trabalhadas em sessões de psicologia ou psiquiatria, especialmente se elas impedem alguém de ter a vida social que querem. Outras são limitações que fazem com que duas pessoas sejam incompatíveis de forma que nenhuma está errada por se incomodar com a outra.
Aceitando falhas e diferenças de opinião
Percebo que muites adolescentes acabam caindo em ideias muito limitantes acerca de quem são pessoas aceitáveis para conversar. Entendo que parte disso pode ter a ver com trauma ou perfeccionismo causado por neurodivergência, e respeito quem quiser se limitar a espaços extremamente restritos ou pessoas que demonstram todas as mesmas opiniões desejadas. Porém, acho que muitas pessoas que originalmente não teriam tais necessidades acabam sendo convencidas de que é de suprema importância só ter amizades que gostam das mesmas coisas e que possuem exatamente as mesmas opiniões sobre questões políticas ou de justiça social.
Eu não estou dizendo que pessoas não-binárias devem se abrir para amizades com pessoas que são contra não-binaridade (ou que pessoas racializadas deveriam tolerar racismo, ou que pessoas neurodivergentes deveriam tolerar psicomisia, ou assim por diante). Não é essa a questão. A questão é que, por exemplo, uma pessoa que recomenda algum vídeo de ContraPoints ou Vaush sobre política não é necessariamente exorsexista. A pessoa poderia, talvez, recomendar algum vídeo sobre o mesmo assunto feito por alguém não-binárie ou que ao menos não tenha feito comentários contra a normalização de identidades não-binárias, mas nem todas as pessoas sabem de todas as posições de todes es criadóries, e, mesmo quando sabem, elas podem discordar do que criadóries falam sobre certas questões mas ainda valorizar as opiniões delus sobre outros assuntos.
Cada pessoa tem o direito de não recomendar, acompanhar, ler, ouvir, assistir ou conversar sobre algo ou alguém por conta de opiniões nocivas que foram demonstradas. Porém, cortar amizades ou não interagir com pessoas por conta delas estarem “contaminadas” por alguma valorização que dão a “conteúdo/produto problemático” acaba gerando situações de isolamento extremo ou de hipocrisia, porque praticamente qualquer pessoa pode ser criticada por alguma demonstração de ignorância ou por afinidade com pessoas com “gostos problemáticos”. É importante ter boa fé e não presumir que qualquer ume que demonstre sentimento positivo em relação a algo seja incapaz de pensamento crítico em relação ao objeto do sentimento positivo.
Por outro lado, também é importante compreender as críticas acerca de pessoas e suas criações, e se esforçar para desaprender cissexismo, capacitismo, heterossexismo, racismo, machismo, diadismo, elitismo e afins presentes em cada ambiente. Isso significa que é importante não repetir certas opiniões ou palavras por serem comumente vistas como “normais” sem se preocupar com as mensagens implícitas ali, e que talvez seja interessante não se apresentar como alguém que gosta de um monte de obras comumente associadas com discriminação por mais que haja a capacidade de entender e concordar com as críticas a tais obras que levantam tal questão.
(Para exemplos relacionados, recomendo ler a seção de microagressões do texto Um guia introdutório para comunidades NHINCQ+ inclusivas.)
A maioria das pessoas simplesmente não se informa muito sobre questões de justiça social, e isso inclui pessoas não-binárias. Então, às vezes, pode ser nosso papel como amizades informar sobre questões como certos termos serem capacitistas ou certas concepções de quem pode ser lésbique ou gay acabam perpetuando racismo, visto que muitas pessoas podem acabar não recebendo bem a mensagem de pessoas desconhecidas.
Na minha experiência, a maioria das pessoas não-binárias não tem a intenção de demonstrar intolerância contra grupos marginalizados. Porém, intenção não é suficiente para entender como “senso comum” ainda pode perpetuar discriminações. É importante sempre tentar entender mais sobre esses assuntos, mas também não se isolar completamente de pessoas que demonstram qualquer comportamento que pode ser interpretado como “problemático”.
Para além de tais questões, é fundamental entender que cada pessoa possui as próprias particularidades, e que nem tudo que incomoda ou irrita é uma ação automaticamente abusiva. Às vezes, suas amizades podem estar ocupadas com outras pessoas ou atividades. Em outras vezes, alguém querendo conversar imediatamente por estar em crise está fazendo isso porque confia no fato de que a outra pessoa se importa e pode ajudar. É possível reavaliar uma amizade caso os pontos negativos pareçam ser muito mais pesados do que os positivos, e não estou dizendo que abuso não pode ocorrer em relacionamentos que não são românticos; porém, se uma pessoa decide se afastar de todes que causem alguma inconveniência, é provável que tal pessoa rompa todos os seus relacionamentos rapidamente.
Algumas sugestões acerca de como puxar conversa
Obviamente, cada plataforma ou evento é diferente em questão de público e formato. Às vezes, faz sentido se introduzir, enquanto em outras, é melhor só contribuir com as discussões sem fazer isso. No caso de dúvida, recomendo se introduzir em conversas de 1 para 1 com pessoas desconhecidas e seguir regras de introdução ou modelos providenciados por outres em espaços com mais gente.
No caso de introduções sem um modelo específico e que têm espaços amplos (por exemplo, redes sociais ou blogs), acho importante estabelecer expectativas (quais tipos de relacionamento são desejados) e oferecer assuntos prontos. Por exemplo:
Oi, meu nome é Alex, uso ê/elu/e, moro em SC, me descobri não-binárie faz mais ou menos um ano e estou procurando amizades e talvez até mesmo afetos. Estou trabalhando numa visual novel que se passa numa estação espacial. Curto rock indie e amo Gravity Falls, The Owl House e Steven Universe (podem me pedir recomendações de fanfics e análises de qualquer um desses desenhos)!
Uma introdução assim oferece vários pontos de partida para uma conversa além do fato de Alex ser não-binárie. Alguém interessade nos mesmos desenhos pode pedir as recomendações citadas ou mesmo perguntar o que a pessoa achou de tal fanfic ou análise famosa. Alguém que está produzindo ou que pensa em produzir jogos pode perguntar sobre esse processo ou compartilhar o próprio trabalho. Alguém que mora em Santa Catarina e conhece um evento envolvendo indie rock pode até mesmo tentar convidar Alex para tal evento (embora eu recomende ao menos uma conversa positiva com alguém antes de convidar a pessoa para sair, mesmo em questão de amizade).
Agora, se introduzir desta forma pode ser peculiar numa mensagem direta. Em tais casos, eu sugiro fazer o processo de alguém que responderia a algo como a introdução acima e tentar achar pontos em comum. Por exemplo:
Oi Alex, meu nome é Mateus (uso u/ulu/u mas aceito o/ele/o também). Estou entrando em contato por ter achado sua introdução. Eu já escrevi umas fanfics de Gravity Falls (de Over the Garden Wall, Undertale e Homestuck também 👀), posso mandar se você se interessa? Aliás, você chegou a escrever fanfics/análises ou só lê mesmo?
A mensagem em questão:
- Explica como a pessoa foi achada (o que é importante estabelecer em casos da mensagem estar sendo enviada por um meio de contato diferente de onde a introdução em questão foi publicada, ou caso a introdução em questão tenha sido feita há muito tempo e esteja “enterrada” sob várias outras publicações);
- Demonstra interesse em um assunto em comum;
- Faz perguntas. Não é apenas um comentário solto sobre ter achado a pessoa legal, é uma mensagem que incentiva a outra pessoa a responder;
- Abre espaço para conversar sobre outros assuntos, caso a pessoa tenha interesse neles e só tenha decidido não citá-los;
- Como a primeira pergunta não abre muito para algo além de “sim/não” e é sobre compartilhar o próprio trabalho, a segunda pergunta incentiva ê Alex a falar mais sobre si mesme e sobre seus gostos. Isso demonstra interesse na pessoa para além de uma audiência em potencial para as fanfics du Mateus.
Este é apenas um exemplo. Também é possível tentar achar assuntos em comum com alguém por meio de perguntar sobre trabalho, alimentação, coisas que a pessoa andou fazendo/planeja fazer ou afins. Eu acho esses assuntos “menos seguros” em comparação com a questão de interesses que alguém já demonstrou porque a situação pode acabar ficando desconfortável: e se a pessoa esteve numa crise depressiva por semanas após alguém da família ter morrido e recém foi demitida por conta disso? Não que casos assim sejam comuns, ou que alguém não possa ter uma reação ruim a outro assunto trazido também, mas é importante ter em mente que mesmo assuntos comumente pensados como “fáceis de responder” podem acabar afastando pessoas cujas vidas não são tão “normais”.
Perguntar sobre gostos como livros, filmes, séries, podcasts, músicas, jogos ou afins também é uma opção, mas, considerando a variedade de mídia existente, pode ser muito difícil achar um assunto em comum. Não que haja problema em tentar, ao meu ver, desde que seja mantida em mente a noção de que os gostos de alguém não necessariamente refletem que a pessoa concorda com tudo que certa mídia passa.
Se alguém tem acesso a publicações da pessoa, e não somente a uma introdução, é possível ver/ler/ouvir o que a pessoa fez e comentar. Em uma primeira interação, eu não recomendo criticar (embora haja a opção de perguntar se a pessoa aceita uma crítica construtiva), a não ser que seja preferível só fazer isso ao invés de construir um relacionamento positivo. É só falar de algo que foi apreciado e continuar com alguma pergunta que faça sentido e que não envolva exigir trabalho (pedir por outra publicação de assunto diferente ou para que a pessoa se explique sobre alguma das coisas que publicou é exigir trabalho). Por exemplo:
Oii, eu sou Nath. Gostei muito da sua música “anticistema”, a letra “eu não preciso do seu gênero cis” me representou muito como pessoa agênero. O som me lembrou muito Ryan Cassata, você conhece ele? Se tiver mais umas recomendações parecidas, eu agradeceria, mas sem pressão!“
Recomendações de algumes artistas/bandas não seria necessariamente algo que daria muito trabalho para alguém que está no meio musical, na minha opinião: é diferente de pedir uma explicação longa, uma resposta a um texto/vídeo longo, uma música nova ou algo do tipo. Alternativamente, alguém da mesma área pode perguntar sobre algum dos instrumentos utilizados ou mesmo perguntar se pode fazer um cover ou remix.
Mas como fazer uma amizade vingar?
Digamos, então, que contato foi estabelecido, e que houve uma conversa. Mas aí ela parou, sem mais retornos ou perguntas a serem respondidas. O que fazer?
Avaliar o nível de conforto da outra pessoa. A pessoa respondeu por educação ou por ter interesse em conversar? Houveram comentários e perguntas extras de ambos os lados ou uma pessoa ficou puxando assunto enquanto a outra só forneceu respostas resumidas?
Avaliar a compatibilidade. Houve algum assunto em comum ou tudo o que uma pessoa trouxe a outra ficou sem saber o que responder por não ter contato com o assunto? É o caso de uma pessoa estar sendo excessivamente crítica (por meio de “brincadeiras” ou de forma mais direta) enquanto a outra tenta ser amigável e fingir que está tudo bem? Uma das pessoas está flertando enquanto a outra nem seria capaz de experienciar atração de volta? É importante lembrar de que é possível pedir conselhos para alguém ou mesmo colaborar em um projeto sem haver uma amizade profunda ali.
Nem sempre a única solução é se afastar. É possível levantar o problema e ter uma conversa honesta, ou se contentar com conversas esporádicas. Às vezes a questão é mais a de uma das pessoas se desgastar mentalmente durante essas interações sem necessariamente desgostar delas, ou preferir não se comunicar via conversas online.
Observações finais
A internet oferece as possibilidades de acessar muitas informações e de se comunicar com diversos grupos de pessoas. Porém, essa diversidade imensa também significa que há uma fragmentação muito maior de interesses, ideologias e normas sociais em comparação com décadas anteriores.
Mesmo que termos como não-binárie, gênero-fluido e agênero tenham sido em algum ponto apenas utilizados por pessoas dentro de certos círculos sociais, a tendência é que estes termos acabem cada vez mais saindo de “bolhas” e sendo adotados por pessoas que não estão necessariamente presentes nas mesmas redes sociais, interessadas nos mesmos assuntos, defendendo as mesmas correntes políticas ou por dentro dos mesmos memes. Por isso, buscar amizades com não-binárias não pode se resumir à presunção de que todes pensamos ou nos comunicamos da mesma forma, ou à separação binária entre pessoas “boas” que são instantaneamente nossas melhores amigas e pessoas “más” que não têm interesse em conversar ou possuem gostos ou ideologias ligeiramente diferentes.
Achar pessoas compatíveis é uma tarefa que pode ser muito difícil, e a questão é pior ainda quando se trata de achar alguém que vai saber respeitar múltiplas questões envolvidas com a vida de determinada pessoa (de raça, de classe, de religião, de tipo de corpo, de linguagem pessoal, de orientação, de neurótipo e assim por diante). Mas esperança e forças para continuar tentando são necessárias para quem sente essa vontade.
É natural ter um pouco de tristeza em abandonar a “vida normal” após se descobrir não-binárie (ou, em outros casos, lésbique, arromântique, trans ou afins). De ter que se afastar de pessoas previamente queridas que na verdade são exorsexistas que não levam questões como nome, linguagem pessoal, disforia/euforia de gênero e identidade de gênero a sério, afirmando que é só fase, fazendo chacota ou insistindo em tratar a pessoa como sempre tratou até que a pessoa desista de afirmar a própria identidade. Mas é fundamental ter em mente que outros caminhos são possíveis, que é impossível pessoas exorsexistas forçarem todo mundo pra dentro do armário e que se livrar de relacionamentos tóxicos abrirá espaço na vida para amizades que não minimizam a identidade pessoal de alguém que está se afirmando de determinada forma.
Comments
October 17, 2025 21:56
@Aster Nigger
October 17, 2025 21:53
@Aster > racismo
How dare you refer to me by my Christian name?