no homo (mas de forma não-binária)

Uma análise do meu desconforto com certas identidades diamóricas. No entanto, já aviso que minha intenção não é invalidar quem usa tais identidades, ou convencer alguém de que tais identidades são problemáticas.

Esta é uma postagem para o primeiro Rodízio NHINCQ+. Seu tema é Gênero, orientação e a relação entre tais conceitos.

(gai e eu)

Pessoalmente (ou seja, peço que não se ofenda quem tem uma perspectiva diferente), nunca gostei do termo gai.

Pra quem não conhece: é um termo feito para pessoas não-binárias que “se sentem gays”, não (necessariamente) no sentido de sentirem atração pelo mesmo gênero mas sim no sentido de terem uma conexão com heterodissidência. Vale reforçar que, na anglosfera, a palavra gay também tem uma conotação mais inclusiva do que na lusosfera, onde tal palavra é associada muito mais com homens que provavelmente só sentem atração por homens.

Só que: foi um termo cunhado no final de 2017. Ele veio depois de diamórique, enebeane, orbisiane, quadrisiane, dórique e trízique, e imediatamente “pegou” muito mais do que esses termos no Tumblr, ao menos na época. (sarcasmo) Porque né, pra quê ter que explicar termos de atração vinda de pessoas não-binárias mais originais e menos ambíguos quando é possível continuar se dizendo gay, só que com uma letra trocada? (/sarcasmo)

Mas, além da questão de pessoas não-binárias substituírem gay em seus vocabulários por gai ao invés de dia (versão abreviada informal de diamórique), tem a questão de que eu nunca me senti gay, em nenhum sentido comum da palavra. Assim, a popularização de gai me deixou de fora da representação de questões de atração mais uma vez, algo que também ocorre quando se fala da atração por pessoas binárias de uma perspectiva binária ou alinhada a um gênero binário.

(a questão cultural)

E aí esta é uma questão pessoal. Uma que imagino que pessoas gais com certas experiências passem pelo “oposto”. Porque, até onde vejo, o apego de muitas pessoas não-binárias a termos como gay e lésbica vem de um histórico dentro destas comunidades. Um histórico que fica difícil de ignorar e largar, por mais que tais termos possam não ser precisos num “sentido objetivo” da coisa.

Por exemplo, se uma pessoa ficou anos socializando e acompanhando um monte de material lésbico/sáfico direcionado a um público lésbico, mas eventualmente descobriu que não é mulher, por mais que outras pessoas a vejam como mulher que gosta de mulheres: essa pessoa vai estar confortável em subitamente largar a identidade lésbica para adotar algum termo que poucas pessoas sequer conhecem, que não possuem quase nenhum histórico e que são pouco utilizados demais para uma comunidade coesa? E, caso a pessoa realmente não se sinta mais confortável em se dizer lésbica: ela merece ser alvo de escárnio por usar um termo que a lembre de tal sensação de comunidade?

Pelo contrário, eu nunca me vi como adjacente a homem gay ou mulher lésbica. Minha descoberta de orientação passou por “pessoa que simplesmente não vê graça em ninguém mas que sabe que tem que fingir atração aparentemente duárica pra que o resto deixe em paz”, daí por “gostaria de ter relações com homens em teoria mas com nenhum guri que conheço na prática”, depois assexual, depois “demissexual provavelmente hétero”, depois demissexual birromântique, depois demissexual arofluxo bi, depois demissexual poliarofluxo…

Minha a-espectralidade e, posteriormente, minha não-binaridade (ou, especificamente, ideo-exobinaridade) me isolaram da ideia de frequentar espaços/comunidades/eventos/etc. para pessoas binárias atraídas por pessoas binárias. E, mesmo na época que eu estava aberte a experiências com gente desconhecida, os espaços que fui que eram mais carregados de expectativas alo eram também carregados de duaricismo, e eles foram poucos devido a eu ter sido ume adolescente autista com dificuldades pra socializar ou entender situações sociais.

E esse isolamento dos meios LG (lésbicos e gays, no caso) acaba pesando em outros momentos também. Porque, por ser uma pessoa não-binária, acabo não tentando me socializar muito com gente que vai me sugar a energia até eu conseguir enfiar na cabeça a questão da forma certa de se referir a mim envolver neolinguagem. Mas daí, mesmo em espaços onde boa parte das pessoas não é LG, binária e/ou cis, ainda sinto que estas pessoas tiveram toda uma imersão cultural em espaços que nunca fiz e nunca farei parte, em mídia que nunca tive motivo nenhum para ter interesse, e por assim vai.

Quando se fala sobre incluir pessoas que não são lésbicas ou gays em espaços NHINCQ+ - espaços, no caso, que se propõem a incluir quem é múlti, trans, assexual, arromântique, intersexo, não-binárie e/ou afins - a questão também é sobre isso. Sobre não presumir que todas as pessoas vão estar confortáveis em serem chamadas por termos que se referem a pessoas LG por não serem hétero e/ou não serem percebidas como tal. Sobre não presumir um interesse universal em certos assuntos ou certas experiências.

Isso, aliás, se aplica também a pessoas que são lésbicas e gays. Só que, enquanto estas ao menos possuem uma certa gama de variedade de espaços, as coisas são mais complicadas para identidades menos conhecidas, que são aceitas em menos espaços “LGBT”, que não conseguem achar um único grupo ativo com pessoas que possuem as mesmas experiências em questão de identidade de gênero e/ou orientação.

(a questão da precisão identitária)

Como já disse, não sou homem ou mulher ou próxime a isso. Só que, por definição, gai é um termo amplo. Se eu me digo diamórique por ser capaz de sentir atração por certo(s) gênero(s), também posso me dizer gai.

No entanto, não vejo minha atração por ninguém como “gay de forma não-binária”. Nenhuma das minhas atrações vai ser hétero por definição, e teoricamente eu poderia ser capaz de sentir atração por alguém com o mesmo gênero do que o meu ou que tenha um gênero parecido, mas não acho que isso é uma parte fundamental ou necessária da minha identidade.

Eventualmente, foi cunhado um termo complementar a gai chamado strayt (pra ser parecido com straight, uma forma de dizer hétero ou não-queer na língua inglesa, dependendo do contexto). Strayt, assim como gai, não é um termo com restrição nenhum. Qualquer atração que a pessoa diamórica possa interpretar como “hétero de forma não-binária” poderia levar alguém a se classificar como strayt.

De uma perspectiva completamente simplista, eu me sinto mais strayt do que gai. Minha atração geralmente é por gêneros diferentes, e inclusive geralmente é por pessoas que não são do mesmo gênero que me foi designado também.

Só que, fora brincando, ou com o surgimento improvável de uma comunidade relevante sobre o assunto, eu provavelmente não me identificaria com o termo. Dizer-me hétero, mesmo “de forma não-binária”, ainda é compactuar com o heterossexismo, ainda é tentar me colocar num molde que não me serve só para fingir que tenho uma atração menos desvalorizada e ignorada.

É me rebaixar à ideia de pessoas binárias de que no final minha identidade de gênero não é tão importante assim, e que está tudo bem me tratar como uma pessoa binária do gênero que pensam que eu sou. Porque não há como realmente alguém reinvindicar ser hétero sem reinvidicar ser uma pessoa binária. E, num contexto onde muitas pessoas não-binárias se dizem hétero por pura ignorância de que termos podem usar para sua heterodissidência - escolhendo termos de acordo com seu gênero designado ou redefinindo hétero como “atração por gênero(s) diferente(s)” ainda que a posição de poder hétero não inclua isso - não me desce bem usar um termo adjacente a hétero.

(a conclusão)

Peço que tanto quem se diga gai quanto quem se diga strayt considere também reinvindicar uma identidade diamórica. Ser diamórique se encaixa em ambas as experiências, e dá uma oportunidade maior para a criação de espaços que priorizem tal identidade.

Também peço novamente para considerar que nem toda pessoa não-binária vai se ver como “meio gay” ou “gay por padrão”. A ideia monossexista de que só existem duas orientações válidas (e, inclusive, também considero relacionada ao monossexismo a ideia de que existe um número extremamente limitado de “orientações de verdade”) não deveria estar sendo reproduzida em espaços criados por e destinados a pessoas que não se encaixam parcialmente ou totalmente em gêneros binários por mais que aparentem ser os mais comuns.

No fim, esta é uma postagem sobre o isolamento de pessoas diamóricas, e como tal isolamento se multiplica quanto mais alguém está fora de normas diferentes da binaridade. E também um pedido de reflexão sobre o apego não-binário a conceitos que centralizam ideais próximos ao binário de gênero, por mais que não seja um pedido para qualquer pessoa deixar de usar termos que sejam boas descrições para o que sente.