texto publicado em Molleindustria no dia 14 de fevereiro de 2014
À medida que ela pula sobre plataformas móveis, explode barris no momento certo, coleta joias brilhantes, procura baús de tesouro, marca pontos com um tiro na cabeça, invade uma base alienígena, aperfeiçoa o seu trajeto na pista, aprimora suas armas, aloca um bloco perfeito de terra, ganha uma vida extra, recruta um companheiro, usufrui de recursos extraíveis, investe numa nova infraestrutura, persuade um personagem, encaixa um bloco que cai no lugar... À medida que ela aprende através de tentativa e erro, vence, perde... À medida que faz tudo isso, pode ser que minha jogadora camarada perceba que todas as suas ações pertencem a um modo específico de pensar e agir.
Se os videogames, em sua imensa variedade, têm algo em comum, talvez seja a sua ânsia por eficiência e controle. Os jogos eletrônicos são a forma estética da racionalização. Na sociologia, chama-se racionalização um processo de substituição das tradições, costumes e emoções como motivadores da conduta humana pela quantificação e pelo cálculo. A noção foi introduzida na virada do século 20 por Max Weber1, em sua influente obra A ética protestante e o espírito do capitalismo (1905).
A racionalização é um processo histórico de longa duração que tem suas manifestações mais claras na ascensão das burocracias e na organização industrial da produção. Ela transformou nosso mundo nos últimos dois séculos, e hoje continua infiltrando-se em aspectos cada vez maiores da nossa vida social. Enquanto as fábricas administradas cientificamente estão perto de desaparecer de nossa vista (ocidental) e as rígidas burocracias de estados-nações parecem estar ameaçadas pela lógica fluida das redes, a racionalização segue operando na esfera da cultura e das relações pessoais. O comércio, a produção e o consumo de alimentos são arrancados de suas especificidades culturais em benefício da economia de escala (walmartização, monocultura, mcdonaldização, etc.); a educação vem sendo reformulada sob critérios quantitativos e de reprodutibilidade mecânica (testes padronizados, cursos online massivos, etc.); e até as nossas relações cotidianas passaram a ser administradas eficientemente através de redes sociais que impõem protocolos e classificações numéricas padronizadas a interações sociais antes irredutíveis. Os videogames não são apenas construídos a partir de tecnologias de controle e quantificação, eles também são definidos por elas. Quando produzimos retratos artificiais do nosso mundo através de computadores, inevitavelmente transmitimos um viés cibernético que pode reforçar certos tipos de pressupostos e maneiras de pensar. Aos olhos de um computador, tudo é matematicamente definido e suscetível ao cálculo racional. Uma vez que os jogos são orientados por um objetivo, todos os elementos e relações dentro deles tendem a ser reduzidos a meios e fins. Por isso os desenvolvedores costumam fazer cara feia para a incorporação de mecânicas não-funcionais, já que estas representam um custo desnecessário e podem acrescentar níveis de ambiguidade e alienar os jogadores. Os verbos que caracterizam as ações dos jogadores, quando não estão diretamente relacionados à violência, pertencem ao arsenal da racionalização: resolver, eliminar, gerenciar, atualizar, coletar, avaliar e assim por diante. Em jogos de estratégia e de gerenciamento, o mundo simulado apresenta-se como uma coleção de recursos a serem extraídos. O cenário muitas vezes é subdivido em unidades parciais (em grades ou células), e os atores que o habitam são definidos pelas funções que realizam. Jogos históricos como Civilization até mesmo projetam a visão moderna sobre o passado — retratando sociedades antigas como se fossem estados-nações imperialistas, desprovidos de qualquer tradição ou sistema de valores que não seja voltado à expansão. Games para um jogador que se baseiam nas habilidades desse — como os de plataforma, de tiro em primeira pessoa ou do gênero arcade — raramente deixam espaço para a expressão ou criatividade, exigindo eficiência nos movimentos dentro de ambientes com ritmos mecânicos. O fenômeno das speedruns (a gravação de sessões de jogatina realizadas com o máximo de perfeição e velocidade possíveis) é a resposta extrema a essa demanda: a fruição entusiasmada dos espaços dos jogos sob os princípios do tailorismo. De Tetris em diante, um grande número de jogos de quebra-cabeças lida com o tema sistêmico de ordem versus desordem e podem ser vistos como exercícios abstratos de racionalização. O jogo para iPhone Async Corp. chega a incluir esse tema em sua apresentação narrativa, fazendo uso irônico do jargão da administração de empresas. Os relacionamentos interpessoais aparecem com regularidade de maneira instrumentalizada nos videogames. O Outro (outro que não o jogador) só existe em sua função para o jogador. Os personagens coadjuvantes normalmente estão presos a papéis binários de amigos vs. inimigos. Em Pokémon, as amizades com animais são deformadas para fazê-los participar de lutas de caráter duvidoso, enquanto os romances em jogos de ação/aventura são exibidos como um mero recurso de enredo que geralmente envolvem um personagem feminino objetificado.
As últimas tendências no desenvolvimento de jogos dão exemplos ainda mais claros dessa relação particular entre videogames e racionalidade instrumental. Nos últimos anos, os chamados jogos sociais do Facebook e de dispositivos móveis têm sido o setor que cresce mais rápido na indústria de games. Com sucessos como FarmVille, a empresa Zynga — localizada em São Francisco (EUA) — alcançou um domínio quase completo do mercado, quando angariou centenas de milhões de usuários ativos em poucos meses.
Essa ascensão vertiginosa desses títulos deve-se em grande medida ao marketing realizado pelos próprios jogadores. O aspecto "social" dos jogos assim chamados consiste na exploração de redes de amizades pré-existentes: as informações sobre os eventos do jogo são postadas automaticamente nas redes sociais e os jogadores são constantemente incentivados a converter seus contatos de Facebook em novos usuários do jogo. As interações diretas entre usuários são, paradoxalmente, muito limitadas neste tipo de game. O estímulo para recrutar novos jogadores não é para desfrutar de um jogo na companhia de amigos, mas de, na verdade, beneficiar-se de suas eventuais ajudas. Em outras palavras, os jogadores são incentivados a ver seus amigos não-jogadores como possíveis recursos para alcançar seus objetivos individuais.
FarmVille e seus spin-offs são um caso particular disso, uma vez que são simultaneamente produtos e porta-vozes de uma ideologia racionalizante.
Eles abordam a temática da administração e expansão de fazendas, cidades, restaurantes ou castelos; e a jogabilidade deles demanda uma constante negociação entre o tempo dentro e fora do jogo. Cada ação custa uma quantidade substancial de tempo ocioso (que simboliza o trabalho), que força o jogador a colocar a sessão do jogo em espera por alguns minutos ou horas antes de realizar a próxima ação. A otimização do tempo de jogo mistura-se com as vidas dos jogadores, já que eles interrompem outras atividades para cuidar de suas vacas virtuais. Às jogadoras e jogadores mais inquietos, a Zynga oferece uma maneira de se livrar dessa rotina monótona: eles podem pagar dinheiro "real" para adquirir instantaneamente aperfeiçoamentos e bens virtuais, driblando essas longas esperas. É desnecessário dizer que esses atalhos pagos têm sido a principal fonte de lucros da Zynga.
Por que as pessoas optam por sujeitar a si mesmas a sistemas abusivos como o de FarmVille? As razões são várias: eles atraem os jogadores não-convencionais com mecânicas simples e livres de estresse; fornecem um espaço online para os jogadores expressarem suas próprias identidades; e exploram o impulso consumista ao oferecer uma alternativa mais barata para o acúmulo de mercadorias físicas. Mas, acima de tudo, esses jogos são o resultado de um processo rigoroso de design que maximiza o vício. O design de jogos tradicionais, a despeito da organização industrial das maiores empresas do ramo, sempre foi considerado um processo criativo e, até certa medida, intuitivo. O que a Zynga aperfeiçoou foi uma abordagem iterativa e científica do desenvolvimento de games em que todas as interações do usuário são registradas e analisadas. Os elementos mais eficientes (por exemplo, o que leva o jogador a gastar mais dinheiro e a retornar ao jogo com mais frequência) são ampliados e multiplicados ao longo do game. Nesse processo orientado por números, os usuários não são tratados como audiência ou fãs fiéis que pagam por entretenimento, mas tornam-se recursos de onde se extraem valores. Para fazer tudo voltar ao princípio, entra em cena o conceito de gamificação. A palavra, que está na moda na publicidade, refere-se à aplicação de elementos similares a de games, como pontuações, missões e níveis, para atividades que não estão no campo dos jogos, como um esforço de torná-las mais divertidas e envolventes. Técnicas de gamificação dão recompensas arbitrárias e mensuráveis na tentativa de incentivar certas ações, como a criação de conteúdo online, a adoção de um padrão específico de consumo ou a aquisição de hábitos "positivos". As pontuações dos usuários são publicadas para alavancar o desejo por competição e status. A propaganda exagerada em torno da gamificação levantou muitas objeções no que diz respeito à efetividade de uma forma tão agressiva de controle comportamental, mas essa preocupação deve ser deixada para a especulação do mercado.
Seja ela viável ou não, a gamificação é o objeto de desejo do capitalismo contemporâneo e, por isso, merece atenção já que antecipa algumas tendências que estão por vir. Ela é a fantasia da medição do imensurável (estilos de vida, afetos, ativismo, reputação, autoestima...), uma vez que a quantificação é uma precondição da mercantilização. A gamificação é a nova fronteira da racionalização das nossas vidas. O sociólogo francês Roger Caillois disse a célebre frase: “o jogo é a ocasião de gasto puro: de tempo, de energia, de engenhosidade, de destreza e, muitas vezes, de dinheiro”2. Jogar games pode parecer a atividade não-instrumental por excelência, a antítese perfeita da produção e reprodução econômica. Mas a verdade é que o ato de jogar, especialmente um título virtual com viés cibernético, pode cultivar a mentalidade e o sistema de valores capitalistas — independentemente do que os jogos em questão querem retratar ou narrar.
Certamente não é difícil encontrar exemplos do pensamento racionalizante e instrumental no mundo que habitamos. O que Max Weber descreveu como uma “jaula de ferro” pode ter simplesmente se tornado o ar que respiramos nas sociedades capitalistas.
Aqui, quero deixar claro que não vejo esse viés como algo que invalida por regra todo o esforço em promover valores diferentes destes. Todas os meios e formas culturais têm seus próprios traços e vieses. No passado, alguns escritores começaram a ver os livros como algo limitador e inerentemente hierárquico. Por isso, propuseram hipertextos como uma forma de dar poder ao leitor. De maneira similar, cineastas transcenderam a linearidade inerente das imagens em sequência ao desenvolver dispositivos linguísticos como o flashback, flashforward e montagem paralela e assim por diante.
A tendência à racionalidade instrumental oferece um caminho de menor resistência: é mais fácil criar um jogo de tiro, ou centrado em sua própria física, do que um game sobre um relacionamento complicado. É algo que os desginers devem estar atentos e se esforçar em fazer algo contrário. Na indústria de jogos, assim como na sociedade como um todo, podemos encontrar tendências subterrâneas e atos desviantes de resistência que reafirmam a irredutibilidade da consciência humana de maneira tenaz.
Fora do mainstream, há cada vez mais e mais trabalhos independentes que rejeitam jogabilidades focadas em atingir objetivos em detrimento da exploração do universo do jogo e de uma narrativa não-linear.
O
s chamados "não-jogos", elaborados pelos desenvolvedores belgas Tale of Tales, trazem desafios ambíguos e desencorajam intencionalmente formas de jogar "teleológicas". A natureza sensual e onírica de suas criações oferece uma alternativa fértil ao mundo dos jogos tradicionais, normalmente regidos pela relação entre meios e fins. Eles fazem isso sem roubar a agência das mãos dos jogadores. O jogo de exploração sinestésica Proteus gira em torno do prazer ocioso de conhecer uma ilha deserta à medida que ela muda com o passar das estações. A hipernatureza de Proteus é sacramentada pelo design do jogo: ela não pode ser explorada nem manipulada, mas apenas vivenciada com olhos e ouvidos atentos de um etólogo, botânico ou meteorologista. As narrativas podem ser uma poderosa força de equilíbrio no mundo normalmente regido pelos cálculos dos jogos eletrônicos. Cart Life, de Richard Hofmeier, é um "simulador de vida de trabalhador pobre" que está destinado a ser um título de referência no movimento crescente de jogos autorais. O game coloca o jogador na pele de uma mãe solteira ou de um trabalhador imigrante que tenta ganhar a vida como camelô ou por meio de uma banca de jornais. A grande inversão feita em relação ao conhecido gênero de vendinha-de-limonadas é a meticulosa simulação dos aspectos mais desesperadores da vida cotidiana. O jogador precisa solicitar licenciamentos, disputar a guarda da filha na Justiça, descansar e comer com regularidade, tomar conta do próprio gato e de seus entes queridos e talvez até se apaixonar enquanto tenta garantir que seus negócios caminhem bem.
A genialidade de Cart Life é a forma que ele põe elementos de narração e descoberta de frente com a jogabilidade cruel de jogos de gerenciamento de recursos. Há uma economia de necessidades materiais composta de dívidas, logística, inventário de guardanapos, gestos rápidos para preparar café expressos e, em paralelo, uma "economia humana" dos relacionamentos, reputação, amor e cuidados. Assim como em Proteus, há muitas pérolas espalhadas por um vasto cenário: diálogos e interações inesperadas, histórias de fundo, sequências pitorescas..., mas para vivenciá-las o jogador deve subtrair parte de seu tempo precioso das atividades quantificáveis.
Em Cart Life, o núcleo do jogo, que é formal, computacional e numérico, é exposto de maneira crua, ao mesmo tempo em que o componente narrativo centrado no jogador esboça um tentador mundo de qualidades — possivelmente, até mesmo uma maneira diferente de se vivê-lo.
Há várias maneiras de lidar com o viés cibernéticos dos videogames.
Em jogos de multijogador é possível subtrair porções de jogatina de estruturas computacionais totalizantes. Jogos híbridos — digitais e físicos — como B.U.T.T.O.N. (do Copenhagen Game Collective), Johann Sebastian Joust (de Douglas Wilson) e Spaceteam (de Henry Smith) são focados em interfaces de jogos analógico-para-digital, mas deixam propositalmente um espaço de interação livre de protocolos computacionais.
Os jogadores de B.U.T.T.O.N. precisam correr até os controles do jogo e realizar ações simples de acordo com os avisos que aparecem na tela, mas, ao fazê-lo, eles se veem forçados a negociar as fronteiras do que é aceitável no jogo e de avaliar o desempenho de outros jogadores em nome da máquina.
Em Johann Sebastian Joust, os jogadores participam de uma brincadeira de pega-pega que utiliza sensores. As regras de participação são definidas e redefinidas pela "comunidade de jogo" formada ao redor da partida.
O game cooperativo local Spaceteam exige que os jogadores operem uma interface dispersa em seus respectivos tablets e smartphones. Enquanto a máquina oferece objetivos claros e demanda eficiência máxima, os jogadores precisam organizar um protocolo fluido de comunicação entre eles fora do universo do jogo. Em meu projeto Molleindustria, frequentemente abordei questões relacionadas à alienação e trabalho. Jogos como Tamatipico, Tuboflex, Every Day the Same Dream e Unmanned, lidam com as dificuldades e lutas de indivíduos inseridos em sistemas burocráticos desumanizantes.
Também tentei criar jogos alternativos de gerenciamento que problematizassem a questão da racionalização. Jogos como McDonald’s Videogame ou Oiligarchy abraçam temas e convenções do gênero: os jogadores administram um processo produtivo tentando maximizar seus lucros. Eles são apresentados a uma natureza objetificada pronta para ser explorada, investem recursos de acordo com as tendências e rendimentos, etc. Mas, ao invés de retratar essas atividades como naturais e neutras, esses games introduzem elementos críticos que subvertem as expectativas dos jogadores: a exploração do meio-ambiente traz consequências perturbadoras e as tentativas de exercer controle sobre os trabalhadores, consumidores e povos nativos causam reações e protestos, e assim por diante. Em suma, as chamadas "externalidades negativas" de um processo produtivo e dos conflitos do capitalismo são incorporadas ao mundo simulado, às vezes em detrimento da jogabilidade e da elegância do design. Estamos apenas começando a aprender a falar das qualidades imensuráveis através dos jogos. Trata-se de um processo lento e coletivo de hackear máquinas registradoras, transformando-as em máquinas de expressar-nos. Jogos eletrônicos precisam aprender de suas contrapartes não-digitais a serem interfaces soltas entre pessoas. Uma nova estética dos jogos precisa ser descoberta: uma que se deleite em causar problemas ao invés de resolvê-los, que comemore paradoxos e rupturas; e que não ignore os sistemas fraturados e disfuncionais, porque esses mesmos sistemas (que governam as nossas vidas) precisam ser desmontados e não idealizados.
Há estratégias a serem inventadas: instrumentos de trabalho devem ser arremessados sobre as obras; válvulas e engrenagens precisam criar cabelo, começar a pulsar e respirar; e algoritmos precisam aprender a contar histórias e a dar gritos de sofrimento.
1:
Considerado um dos fundadores da sociologia, o alemão Maximilian Karl Emil Weber (1864—1920) também teve influência em áreas como a administração, economia, filosofia, direito e ciência política.
2:
Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem, tradução de Maria Ferreira. Lançado em 2017 pela editora Vozes (Petrópolis, RJ).
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