Introdução a conceitos de justiça social, em formato de perguntas e respostas

Este texto não está tão completo quanto eu queria, porém não tenho ideias do que mais adicionar nele sem ficar muito redundante em relação a este aqui. Prefiro não deixar este rascunho aqui para sempre, então resolvi publicá-lo como está. Espero que ainda seja útil.


Aviso de conteúdo: Por conta do assunto a ser discutido, haverão inevitavelmente descrições de opressão, discriminação e violência contra grupos marginalizados.

Eu vou ir explicando o que estas coisas significam aos poucos, mas, se você quiser adiantar para descobrir o significado de certos termos, você pode pesquisar por eles aqui.


Conceitos

O que é justiça social?

Lutar por justiça social significa lutar para que todas as pessoas tenham acesso a saúde, educação, cultura, moradia, justiça e outros direitos e deveres básicos para viver bem. Ou seja, justiça social por si só seria o acesso universal a essas condições.

Em geral, pessoas que lutam por justiça social reconhecem que ela só será atingida combatendo injustiças baseadas em identidades, e esta noção é chamada de política identitária ou de política da identidade.

O que é política identitária / política da identidade?

É o reconhecimento de que grupos específicos possuem interesses e problemas específicos àqueles grupos. É um modelo simplificado que ajuda a entender o sofrimento e o privilégio de cada pessoa por meio da comparação da sua situação com a situação de pessoas com as mesmas identidades.

Por exemplo, mulheres no Brasil, em geral, ganham consideravelmente menos do que homens. Segundo o conceito de política de identidade, este fato não deve ser visto como uma coincidência, e/ou como consequência de falhas individuais, e sim como um sinal de que há fatores sociais que levam a esta situação.

Alguém usando política identitária com o objetivo de lutar pela justiça social pode querer explorar os motivos pelos quais mulheres têm menos chances de terem salários maiores, como por exemplo:

  • Uma sociedade que divulga e repete a ideia de que "boas" mulheres não deveriam ser ambiciosas, o que as condiciona a se contentarem com salários menores do que homens;
  • Uma sociedade que divulga e repete a ideia de que mulheres são menos capazes de fazer trabalhos que dão mais dinheiro, o que impede sua contratação em empregos que pagam mais;
  • Uma sociedade que divulga e repete a ideia de que "boas" mulheres não devem ganhar mais do que seus maridos, o que as incentiva a ter empregos que pagam menos;
  • Uma sociedade que divulga e repete a ideia de que "boas" mulheres precisam cuidar da casa, de sues filhes e da aparência, enquanto homens não, o que causa uma perda de tempo e cansaço maior para mulheres do que para homens e prejudica a procura por um emprego e a estabilidade em tal emprego. Esta ideia também incentiva pessoas a pagarem menos por trabalhos como cuidar de crianças e limpar a casa, já que são coisas que mulheres "deveriam fazer de graça".

Já alguém usando política identitária com o objetivo de lutar contra justiça social pode querer argumentar que a culpa é das próprias mulheres por serem menos ambiciosas, mais preguiçosas, menos capazes ou menos adequadas para o mercado de trabalho. Muitas vezes, podem até dizer que isso é por conta de biologia, como se essas questões fossem genéticas ao invés de sociais (um argumento que também é diadista e cissexista, já que ser mulher não depende de biologia).

De qualquer forma, usar política identitária não significa ignorar completamente questões pessoais. Política identitária é uma abstração que permite ver certos padrões para certos grupos, e não um modelo que prevê a vida pessoal de cada pessoa.

Por exemplo, se uma pessoa diz que mulheres ganham menos do que homens por conta de fatores sociais, isso não significa que a pessoa não acredita que algumas mulheres possam ganhar a mesma coisa ou mais do que a maioria dos homens. Também não significa que a pessoa não acredita na existência de homens que possuem salários baixos.

O que é privilégio e opressão, no contexto de política identitária?

Opressão é a existência de uma força social (ou seja, que não é individual) que prejudica certos grupos de pessoas (grupos que chamamos de marginalizados ou minorizados).

Esta força social muitas vezes é explicada pela questão de leis que explicitamente prejudicam grupos (como leis que proíbem certas crenças ou certos tipos de relacionamentos), mas ela não é necessariamente dependente da lei ou baseada somente nela.

Tal força pode ser uma consequência do tratamento de certos grupos no passado; pode ser uma consequência de oferecer benefícios que não chegam a certos grupos marginalizados; pode ser uma consequência de medos que geram preconceitos que passam a ser incentivados por parte da população e da mídia; entre uma série de outras coisas.

Privilégio não tem necessariamente a ver com receber vantagens explícitas, mas também tem a ver com não ter que passar pelo que um grupo marginalizado passa (ou, ao menos, não passar por isso por conta de ser daquele grupo).

Grupos privilegiados podem nem ter contato com a opressão que grupos marginalizados naquele eixo passam, porque é comum que esse tipo de coisa seja escondida ou vista como normal. Podem também não acreditar em pessoas marginalizadas que falam sobre o quanto são marginalizadas, porque são condicionadas a verem tais pessoas marginalizadas como menos confiáveis para falar de suas próprias experiências, ou como merecedoras de tal marginalização.

Se opressão é algo sendo forçado por um sistema, por que existe pressão para que pessoas individualmente parem de usar certas palavras, apoiar certos projetos, pagar mal sues empregades, ignorar certas causas, etc.?

Obviamente o ideal seria destruir esse sistema e construir maneiras de viver menos opressivas. Porém, estamos muito longe disso, então mudanças incrementais implementadas mais cedo podem ajudar grupos marginalizados de forma mais imediata. Alguns exemplos são:

  1. Existem pessoas que possuem poder para efetuar mudanças. Se for possível que, por exemplo, mais postos de saúde sejam construídos por conta de convencer representantes do governo a fazer isso, isso gera um aumento na qualidade de vida de certas pessoas mesmo que poucas pessoas tenham sido convencidas de que algo deveria ser feito.

  2. Coisas vividas no dia-a-dia, como ser xingade na rua, não conseguir moradia ou trabalho por pertencer a certo grupo, não conseguir fazer terapia porque não há especialistas na área que entendem a situação, não conseguir manter amizades por ser "muito fora do comum" e afins, podem diminuir quando esforços são feitos para conscientizar pessoas de que discriminar é errado (desde que tais esforços prestem). Essas coisas pesam, mesmo as que são possíveis de ignorar se acontecessem só uma vez ou outra.

  3. Esforços que conscientizam grandes partes da população sobre os problemas enfrentados por certos grupos incentiva a ter mais pessoas a ajudar nestas causas, ou ao menos a não atrapalhá-las. Isso ajuda nos outros dois itens.

Além disso, para muitas pessoas, não vai adiantar destruir o sistema capitalista e estatal e viver em pequenas comunidades se estas comunidades ainda vão perpetuar uma série de opressões que nunca foram questionadas. Portanto, esforços que focam em pessoas sem poder de mudar o sistema são úteis mesmo que o sistema caia.

O que é um eixo de opressão?

Quando falamos da posição de mulheres e de homens, estamos falando do eixo de gênero.

Algumas pessoas colocam o modelo do eixo como uma linha reta entre o grupo privilegiado (no caso de gênero, homens) e os grupos que não são privilegiados em outros pontos da linha (como pessoas não-binárias no meio e mulheres no fim).

Porém, eu acredito que, para a maioria das marginalizações, uma linha só não é adequada. Por exemplo, no caso de gênero, pessoas não-binárias podem ter uma linha diferente da de mulheres, por sofrerem coisas diferentes por suas identidades de gênero, mesmo que não internalizem misoginia.

Gênero é uma questão mais complexa que isso, porque pessoas não-binárias podem também ser mulheres ou homens ou ter alguma relação complexa com misoginia e/ou privilégio de homem.

Meu ponto é só que praticamente qualquer eixo que não existe num binário aonde só há um grupo privilegiado e um grupo oprimido vai ter grupos oprimidos que sofrem tipos de opressão diferentes, mesmo que todos tenham em comum o fato de não pertencerem ao grupo privilegiado.

Essas teorias sobre privilégio e opressão com base em grupos também levam em consideração quando a opressão é por mais de uma coisa?

Sim!

Dentro do movimento feminista negro, foram cunhados os termos intersecção e interseccionalidade para descrever que não só é impossível para mulheres negras separar a opressão que sofrem como mulheres da opressão que sofrem como pessoas negras, como também que há coisas que só são sofridas por mulheres negras (que pessoas negras não-mulheres ou mulheres não-negras não sofrem), e que portanto racismo e misoginia contra mulheres negras acaba tendo um peso maior do que só misoginia + racismo.

Muitas pessoas usam interseccionalidade para descrever também questões de outros grupos marginalizados, como transmisoginia (misoginia e cissexismo contra pessoas transfemininas), alossexismo e racismo contra pessoas racializadas a-espectrais, misoginia e monossexismo contra mulheres multi, discriminação religiosa e racial contra candomblecistas negres ou psicomisia e heterossexismo contra pessoas neurodivergentes e heterodissidentes.

Este vídeo (que possui legendas disponíveis em várias línguas) pode ajudar a fixar melhor este assunto.

Enfim, eu também já vi muitas críticas em relação a como pessoas brancas usam mal o termo, seja por reduzi-lo a falar sobre diferenças de identidade, seja por ignorar questões específicas de pessoas racializadas. Então, se você for uma pessoa branca, eu sugiro que você reflita bastante sobre se o termo realmente se encaixa nas frases que você for dizer antes de usá-lo.

De qualquer forma, é importante pensar em como os eixos de opressão como coisas separadas são apenas ferramentas para simplificar explicações e categorizações. Ao pensar em ações concretas, é importante pensar que categorias como intersexo ou autista não existem num vácuo, e que vão existir pessoas intersexo que são trans, pobres, mulheres, neurodivergentes, racializadas, profissionais do sexo, etc. assim como pessoas autistas que vão ser intersexo, trans, pobres, mulheres, racializadas, profissionais do sexo, etc. E todos estes grupos vão ter suas próprias questões específicas também.

Mas como eu vou ter contato com tantos grupos e opressões? Eu nem conheço a maior parte desses termos!

Em relação aos termos em si, existem glossários como este, este, este e este.

Cada grupo, área, interesse ou coisa parecida vai ter seu próprio vocabulário, seja para não ter que usar frases grandes quando algo poderia ser resumido em uma palavra só, seja porque existem conceitos que precisam de palavras novas para poderem ser explicados com precisão.

Se você fizer um curso sobre qualquer coisa, você vai aprender termos que praticamente só pessoas da área que você escolheu conhecem. Se você for jogar um jogo online, provavelmente aprenderá termos e siglas que só serão usades naquele contexto. Aprender palavras novas para poder participar de discussões novas é comum.

É óbvio que cada pessoa vai ter que começar por algum lugar, mas nenhuma das palavras que usei aqui está muito fora do alcance de uma pesquisa básica.

Enfim, eu geralmente gosto de blogs para aprender estas coisas. Isso porque livros acabam sendo muito limitados em relação aos assuntos que tratam, e, se forem parte de alguma pesquisa acadêmica, é provável que os dados e que a terminologia usada estejam bastante desatualizades.

Publicações de massa, como reportagens na TV ou artigos em revistas como Veja e Planeta, também acabam sendo tendenciosas, mal explicadas e colocadas de forma ofensiva. Há um interesse capitalista em tratar grupos marginalizados como curiosidades ou coisas distantes, sem nunca apontar que existe uma opressão sistemática contra eles que precisa ser ativamente combatida.

Blogs, vlogs e podcasts acabam sendo uma boa forma de pessoas marginalizadas poderem falar sobre as coisas que as afetam sem terem que passar por tantas barreiras. Obviamente, o acesso à internet é limitado e isso faz com que sejam mais pessoas brancas e ricas que tenham acesso a ela, e o acesso ao conhecimento e à possibilidade de produção também acaba se concentrando em quem tem mais recursos.

Porém, fazer conteúdo para a internet é algo bem mais acessível do que escrever um livro, fazer um filme, fazer músicas para o rádio, conseguir uma coluna num jornal, etc.

Finalmente, eu quero apontar que ninguém é perfeite; muita gente pode acabar ignorando questões sobre certos grupos mesmo que façam conteúdo muito informativo sobre outros grupos. Eu só não recomendo conteúdo de quem é abertamente hostil contra outros grupos marginalizados, mas umas microagressões ou uns furos ainda estão num nível aceitável pra mim.

Aqui tem uns conceitos e umas dicas que podem ajudar a não passar vergonha, se você quiser se juntar a uma comunidade focada neste tipo de coisa para começar a aprender mais.

Interações

Quero aprender mais sobre certa questão relacionada a um grupo marginalizado, onde/para quem posso perguntar sobre isso?

Eu sugiro que primeiro você pesquise sobre a questão.

Se você não conseguiu achar nada, pergunte em algum lugar/para alguém que explicitamente aceita responder este tipo de pergunta.

Depois disso, você pode tentar perguntar em algum grupo que confia (seja de chat, de rede social, fórum ou presencial).

Se você ainda não conseguiu a informação ou não acha onde perguntar, você pode tentar perguntar abertamente em sua conta de blog/rede social, ou perguntar em privado para alguma amizade que deve saber sobre isso (mas só depois de perguntar se a pessoa se importa em responder uma pergunta sobre aquilo e de dizer que você pesquisou e não achou, se você não sabe o quanto a pessoa está confortável com isso).

O que você não deve fazer é achar uma pessoa aleatória pertencente ao grupo marginalizado que não te conhece e que geralmente não faz esse tipo de trabalho e enviar suas perguntas sem contexto ou tato nenhum.

Eu quero ser ume boe aliade, mas vejo chacota constante sobre como quem se diz aliade "só quer biscoito". Como não dar a impressão que meu ativismo é superficial?

(Uma pessoa aliada seria alguém de fora de um grupo marginalizado, mas que concorda com as causas de tal grupo e quer ajudá-lo em sua luta.)

  • Evite se classificar como aliade, a não ser que seja relevante (por exemplo, colocar em seu perfil onde você nunca fala de causas cisdissidentes e mal fala com pessoas cisdissidentes que você é uma pessoa cis aliada não faz muito sentido, mas ao confrontar alguém cis que não acredita que qualquer pessoa que não seja trans apoie pessoas trans, pode ser legal você dizer que apoia a causa).

  • Ao presenciar situações de discriminação contra grupos aos quais você não pertence, você provavelmente tem mais chances de convencer alguém de que aquilo é ruim do que alguém do grupo afetado. Use isto ao seu favor e, se não for para discutir e falar que aquilo não deveria ter sido feito, você pode ao menos não rir junto, não se colocar a favor do que foi feito, e/ou possivelmente ajudar quem está sendo afetade (no caso de haverem vítimas presentes ou que você tem contato).

  • Participe de eventos abertos ao público sobre grupos dos quais você não faz parte. Existe um ou outro evento fechado só para pessoas do grupo, então é bom conferir isso antes de ir, mas a maioria é aberta a todes.

  • Tente acompanhar e pesquisar sobre assuntos de grupos marginalizados sem depender apenas de sugestões de conteúdo alheias ou de respostas a perguntas ou pedidos que você fez. Ser aliade também tem a ver com não dar trabalho para pessoas do grupo marginalizado, e fazer perguntas diretas quando você tem dúvidas ou constantemente pedir sugestões de conteúdo sem nem pesquisar antes são formas de exigir trabalho.

  • Não exagere. Se você fala o tempo todo sobre o quanto admira um grupo marginalizado (do qual você não faz parte), posta o tempo todo recomendando links sobre ele, reclama sobre querer amizades/relacionamentos com pessoas de tal grupo e não ter e afins, parece menos que você quer ajudar a causa e mais que você está vendo pessoas desse grupo como um interesse a ser estudado, de forma objetificadora.

  • Não demonstre apoio a causas só quando outras pessoas estão vendo (ou só quando pessoas do grupo marginalizado em questão estão vendo). Muitas vezes, isso é perceptível.

  • Ao encontrar discriminação, não fique enviando esse tipo de coisa para pessoas marginalizadas só para mostrar que você também acha ridículo ou para tentar fazer com que alguma pessoa que você gosta brigue com quem está discriminando. Você ainda está estressando a pessoa (fazendo com que ela veja discriminação que a afeta) e/ou exigindo trabalho dela.

Eu queria compartilhar um vídeo/texto/meme/etc. ofensivo, não porque acho ele bom mas porque acho ele ruim/ridículo, ou porque quero avisar minhas amizades que isso está acontecendo. Como posso minimizar possíveis danos?

  • Se você vai passar o conteúdo para uma pessoa só, pergunte antes se ela quer saber disso.

  • Use avisos de conteúdo, para que pessoas possam optar por não ver aquilo.

Em plataformas onde existe função de spoiler/aviso de conteúdo, você pode simplesmente fazer isso:

Aviso de conteúdo: [discriminação anti-grupo]

[conteúdo que você quer passar dentro do conteúdo escondido]

Em plataformas onde isso não existe, você pode fazer algo do tipo:

Aviso de conteúdo: [discriminação anti-grupo]

.

.

[conteúdo que você quer passar]

.

.

Fim do aviso de conteúdo para [discriminação anti-grupo]

Você pode (e deve) dar uma descrição da sua intenção em compartilhar o conteúdo. Se a descrição menciona ou detalha a discriminação, sugiro deixar dentro do conteúdo escondido/protegido pelo aviso. Se não, pode ser antes ou depois.

  • Não passe o conteúdo diretamente.

Ao invés de dizer "olha só esse vídeo racista" e passar o link, você pode comentar sobre o que ocorre no vídeo dentro de um aviso de conteúdo sem dar mais visualizações para a página ou para o vídeo.

Não só sua descrição provavelmente vai causar menos impactos negativos do que ver o conteúdo "cru", como também a pessoa não vai ter que perder tempo consumindo conteúdo ruim e/ou aumentar a popularidade do conteúdo.

Se alguém realmente quiser o link, a pessoa pode pedir.

  • Evite fazer disso um hábito.

Mesmo que seja algo consensual (porque você pergunta antes/sempre avisa sobre o conteúdo), é possível que você e/ou que quem esteja recebendo as mensagens estejam usando isso como uma forma de remoer coisas ruins, ou de se sentirem seres superiores a quem faz isso sem estarem fazendo nada para combater as ideias do conteúdo.

Alguém disse que algo contribui com opressão/discriminação de um grupo marginalizado do qual não faço parte, mas eu discordo. Como proceder?

Acho que isso depende muito da situação.

Existem coisas que são mais controversas (por exemplo, se homossexual é um termo obsoleto/inadequado/ofensivo e não deve ser sugerido para pessoas ou se é um termo neutro que é só menos usado hoje em dia e que pode ser colocado em materiais), e coisas que boa parte da comunidade vai concordar (por exemplo, que recusar algum serviço a alguém por ser heterodissidente é discriminação heterossexista).

Também existe a questão de que tipo de pessoa está dizendo isso. É alguém da própria comunidade afetada, ou alguém que está dizendo ser aliade de tal comunidade?

Se é uma coisa que geralmente a comunidade afetada concorda que é ruim, eu sugiro não discutir, mesmo que você ache que talvez não seja algo opressivo. Talvez sua falta de experiência e conhecimento sobre aquele tipo de opressão esteja fazendo com que você não perceba que exista um problema, e, se você quiser entender mais sobre a questão, é provável que pesquisando você ache informações detalhadas sobre aquilo.

Se é algo mais controverso, mas que está sendo dito por alguém do grupo afetado, eu também sugiro não discutir, porque é muito difícil haver uma discussão quando só parece que você está sendo uma pessoa privilegiada frágil que não quer admitir que algo que você faz/concorda com contribui com opressão.

Se você realmente pesquisar e ler a opinião de outras pessoas sobre a questão (principalmente de ativistas que pertencem a tal grupo) e chegar à conclusão de que você realmente discorda, o que posso recomendar é se afastar da pessoa, ou, se for algo simples (como parar de usar certa palavra), fazer a coisa mesmo que você não ache importante, só para não machucar pessoas ou não comprar briga à toa.

Se quem está falando isso é uma pessoa que não pertence ao grupo marginalizado, e for uma questão que boa parte do grupo marginalizado (novamente, inclusive ativistas) não concorda que é verdade, você pode trazer as opiniões de pessoas marginalizadas sobre isso para discutir com a pessoa (desde que sejam materiais já prontos; não é legal sair perguntando para que pessoas façam um trabalho para você de graça só por conta de uma discussão).

Eu sei que muita gente diz que não é para tomar lados dentro de questões de grupos aos quais pessoas não fazem parte, mas tem vezes que isso é inevitável. Por exemplo, eu não sou gay/lésbique, mas se eu tiver que fazer um material sobre orientações, vou ter que tomar um lado em relação ao prefixo homo ser adequado ou não. E, se uma pessoa administra uma comunidade que não tolera discriminação, ela vai ter que decidir que tipos de comportamentos vão ser considerados discriminatórios.

Não recomendo sair tomando lado em qualquer discussão que houver, mas tem vezes que isso é necessário, e que é óbvio que um lado está sendo tomado mesmo se a discussão estiver sendo evitada.

O que eu faço se eu literalmente não conseguir fazer algo que me pedirem para fazer?

(Por exemplo, parar de usar certa palavra ao ter problemas de memória/de aprendizado de vocabulário que fazem com que isso seja difícil, ou não dar dinheiro para pessoas/grupos por não ter dinheiro sobrando.)

Acho que isso depende para cada situação.

Por exemplo, no caso de não ter dinheiro para pagar alguém que exige dinheiro para responder perguntas, você vai ter que aceitar que não vai poder perguntar para aquela pessoa, por mais que você queira perguntar. (Ou talvez você possa pedir para outra pessoa pagar e perguntar por você, se possível.)

No caso de não ter dinheiro para ajudar alguém que precisa de ajuda urgente, você pode ao menos compartilhar a postagem, ou, se não for uma postagem, perguntar se a pessoa quer que isso seja compartilhado em outras plataformas às quais você tem acesso.

No caso de você não conseguir lembrar de não usar certas palavras, você pode colocar em algum lugar em seu perfil/sua introdução que você talvez use certas palavras porque nunca se lembra de removê-las de seu vocabulário.

No caso de você não conseguir lembrar nomes e conjuntos de linguagem em um espaço físico onde não há essa informação escrita em lugar nenhum, você pode escrever para tentar lembrar e/ou avisar que pode acabar esquecendo. (Treinar usar -/-/- como linguagem neutra pode ser uma boa pedida para esta situação.)

Eu fiz um material informativo/uma postagem sobre um grupo do qual não faço parte, e alguém daquele grupo me criticou por não ter falado direito de tal grupo. Como proceder?

Na minha experiência, é bem raro que as reclamações do grupo estejam erradas. É comum que esse tipo de material seja baseado em pesquisas superficiais e/ou suposições feitas por pessoas de fora do grupo.

Eu sugiro considerar as reclamações, pensar no quanto era possível seu material ser mais preciso, corrigi-lo (se for possível) e pedir desculpas tanto para quem reclamou quanto publicamente, além de falar do que será feito para que tais erros sejam evitados no futuro.

Se o problema foi apenas falta de espaço, então o material não foi bem planejado.

Caso você tenha pesquisado e lido mais sobre o assunto sem achar nada que concordasse com o que a pessoa disse, eu sugiro ou ignorar esse tipo de comentário, ou responder com diversas fontes que discordam da pessoa.

Eu vi gente dizendo que minha orientação/preferência sexual/tara é problemática, mas eu realmente me sinto dessa maneira, o que eu faço?

Considere que há sim a possibilidade de você se sentir assim por conta de estereótipos e pressões sociais, e que pode haver a possibilidade de mudar de ideia no futuro ao ter mais contato com grupos marginalizados que são frequentemente objetificados/estereotipados na mídia e no "senso comum".

De qualquer forma, você deveria considerar não ficar falando sobre isso (o que inclui não usar rótulos que indicam isso), porque assim só parece que você tem orgulho de ser preconceituose e/ou de apoiar sistemas opressivos. É perfeitamente possível procurar relacionamentos sem ficar dizendo o quanto você vai aceitar/rejeitar alguém por questões que não deveriam fazer parte de sua orientação.

Comportamentos em comunidades

Existe gente que vai me odiar só porque sou homem/cis/hétero/branque/neurotípique/etc.?

Podem te odiar se você se recusar a aprender sobre questões de pessoas que não tem o seu privilégio, ou podem não querer falar com você sobre questões que tem a ver com a marginalização que elas tem e você não.

Mas, em geral, não vão te odiar ou tratar mal só por isso. A maioria dos espaços mistos moderados têm algum tipo de regra sobre não atacar indivíduos.

Mas o quanto devo levar a sério alguém que sempre diz que "[pessoas de tal grupo privilegiado] são [coisa ruim]"?

Em geral, quem faz isso tem como objetivo uma dessas coisas, ou ambas as primeiras:

  • Chamar a atenção para as atitudes que geralmente são pessoas de certo grupo privilegiado que fazem;
  • Desabafar sobre tratamento ruim constante por parte de pessoas do grupo privilegiado;
  • Tentar redirecionar o ódio pela opressão de um grupo privilegiado para outro grupo marginalizado (ver: apito de cachorro).

Essas duas primeiras coisas podem incomodar, mas se você entende que o que a pessoa passou é pior do que o que você está passando, você provavelmente não vai ligar tanto.

(Também recomendo que não responda coisas do tipo "ah é, eu sou branque e também odeio pessoas brancas" ou "mas eu sou cis e não faço isso, então tem esperança pra nós", porque assim parece que você se incomodou com o sofrimento da pessoa e quis fazer com que isso fosse sobre você para que você possa se redimir mesmo só fazendo esforços básicos para ajudar na causa em questão.)

Em relação à terceira coisa, é um sinal de que aquela pessoa quer convencer pessoas que odiar certo grupo marginalizado é aceitável, ou está começando a acreditar nisso. Você pode tentar falar com a pessoa, ou pode se afastar dela, ou fazer o que faria com qualquer outra pessoa que você descobriu que é heterossexista, racista, cissexista, misógina, capacitista, elitista, etc.

Por que alguns grupos são fechados apenas para pessoas de certo grupo marginalizado? Isso não é ruim para pessoas privilegiadas que querem aprender sobre a causa ou acompanhar sues parceires?

Várias pessoas possuem desconfiança ou mesmo trauma de pessoas de grupos privilegiados, e não vão se sentir totalmente seguras se abrindo em espaços com pessoas que possuem certos privilégios sobre elas.

Por exemplo, certas mulheres só vão se sentir seguras em falar sobre seu relacionamento abusivo em espaços sem homens, ou certas pessoas neurodivergentes só vão se sentir seguras em falar sobre aspectos considerados normais da sociedade serem danosos para elas em espaços sem pessoas neurotípicas.

Ou, se forem espaços sobre atividades específicas, é provável que o grupo tenha sido historicamente excluído de certos espaços ou julgado por estar neles, e algo focado no grupo contribui para o fortalecimento de uma comunidade de pessoas pertencentes a certo grupo que faz certa atividade, e incentiva pessoas que não se sentiriam seguras em um grupo misto a fazerem certa atividade.

Nem todo espaço é feito para que pessoas privilegiadas possam aprender sobre as experiências de grupos marginalizados. Espaços diferentes podem servir para propósitos diferentes. Vários materiais e eventos estão disponíveis a pessoas que não fazem parte de tais grupos.

Por que uma pessoa de um grupo marginalizado pode querer só ter relacionamentos dentro daquele grupo, enquanto uma pessoa de um grupo privilegiado não pode querer só ter relacionamentos dentro nem do grupo privilegiado e nem do marginalizado?

Porque quando uma pessoa que é, por exemplo, trans, só quer ter relacionamentos com outras pessoas que são trans, isso é por conta de querer alguém que compartilhe a experiência de ser trans em uma sociedade cissexista, e/ou de não confiar que pessoas cis interessadas realmente respeitem pessoas trans em todos os sentidos.

Enquanto isso, alguém cis que só quer ter relacionamentos com pessoas cis não se importa com experiências cis em comum, porque a sociedade já coloca ser cis como normal.

Já alguém cis que só quer ter relacionamentos com pessoas trans não está agindo assim por ter motivo para não confiar que pessoas cis respeitem sua identidade e modalidade de gênero. Geralmente sentem "atração por pessoas trans" porque consideram pessoas trans como de um gênero só, ou ao menos consideram mulheres trans como um gênero separado de mulheres cis e homens trans como um gênero separado de homens cis.

Ou podem também ter presunções específicas sobre pessoas trans, como por exemplo que possuem genitálias de uma pessoa perissexo (não-intersexo) do seu gênero designado que funcionam de forma igual às genitálias de uma pessoa cis perissexo (o que pode acontecer, mas que muitas vezes não é o caso). Também podem achar que pessoas trans só se identificam desta forma por conta de alguma vontade sexual extrema. Estes são alguns exemplos de preconceitos, mas existem vários outros também.

Eu citei pessoas trans como exemplo, mas esse tipo de comportamento diferenciado entre as preferências de quem é do grupo marginalizado e de quem não é acontecem com vários grupos de formas similares.

Alguns espaços são muito específicos (como grupos para mulheres negras sáficas ou blogs focados em experiências transneutras). Não é melhor fazer só grupos mais gerais, que ajudam mais gente?

Às vezes, questões mais específicas acabam ficando perdidas em lugares com foco mais geral. É mais fácil para mulheres negras sáficas acharem pessoas que também são mulheres negras sáficas em um grupo específico para isso do que em um grupo que é só de mulheres, só de pessoas negras ou só de pessoas LGBTQIAPN+, por exemplo.

Grupos gerais são importantes, especialmente se a ideia é que sejam grandes e assim possam fazer mais coisas. Mas grupos específicos também são importantes, por poderem ser mais seguros e inclusivos que grupos gerais, ou trazer mais visibilidade a questões específicas de forma que pode acontecer bem menos em espaços mais gerais.