Do que sinto falta na representatividade não-binária

Opinião pessoal num texto meio embolado para o rodízio de novembro.

Este texto é para o segundo Rodízio NHINCQ+. Seu tema é Representatividade.

Eu acho que o conceito de não-binaridade é útil como um agrupamento político. Não no sentido de que todas as pessoas não-binárias possuem as mesmas ideologias, mas no sentido de demandas e questionamentos trazides para uma sociedade exorsexista. Por exemplo:

  • Espaços não deveriam ser divididos apenas entre homens e mulheres se há pessoas que não fazem parte de nenhuma dessas categorias;
  • Linguagens pessoais não deveriam ser divididas apenas entre a associada com mulheres ou com feminilidade e a associada com homens ou com masculinidade se existem pessoas desconfortáveis em terem que escolher entre apenas uma entre tais possibilidades;
  • A presença de gênero (ou “sexo” mas de forma vista como gênero) em documentos deve ser questionada, visto que existem pessoas gênero-fluido ou de gêneros cujos termos não foram cunhados ainda mas que podem vir a se tornar termos indispensáveis para suas descrições, entre outras. Além disso, como identidade de gênero é algo pessoal e subjetivo, não faz sentido tratar tal questão como algo tão identificável como data de nascimento ou altura;
  • Se há uma variedade inquantificável de identidades de gênero, sendo que a maioria das quais é independente de expressão de gênero, não faz sentido julgar o gênero de alguém por sua aparência.

Porém, quando se trata de representação na mídia, sinto que alguém ser não-binárie por si só não é suficiente.

Entendo que é importante que pessoas de todas as idades tenham contato com a ideia de que nem todo mundo é homem ou mulher. Que, de início, tudo bem que a representação não-binária se dê por meio de personagens cujo gênero não é especificado dentro da mídia (apenas por comentários de criadóries) e que sua sinalização seja somente pelo uso de they/them (que, com sorte, podem ser traduzidos como ê/elu/e ou le/ile/e por aqui ao invés de os/eles/os ou algum conjunto padrão).

Mas tais experiências não ressoam comigo.

Assim, eu não tenho problemas com mundos de fantasia onde exorsexismo não é um problema (bom exemplo atual: The Owl House, mas quem não é familiar pode pensar talvez em Undertale ou Steven Universe). Não vejo problema nisso por si só. Eu vejo mais problemas em histórias que são feitas para serem realistas mas que ainda possuem elementos pouco realísticos (ler, ou melhor, não ler: Todos, Nenhum: Simplesmente Humano).

Também sei que muitas pessoas reais não se definem além de não-binárias. E que muitas das quais se definem além disso são agênero, demibinárias ou bigênero homem/mulher. Ou seja: ao tentar fazer alguma mídia popular e fácil de entender, dificilmente alguém vai pensar em elaborar personagens neurogênero, xenogênero ou mesmo aporagênero.

E, enquanto consigo pensar em vários conjuntos diferentes envolvendo neolinguagem que são usados por váries na anglosfera - xe/xem, ze/hir, ne/nem, e/em, ey/em, fae/faer, etc. - a possibilidade de mídias lusófonas tentarem usar algo além de artigos ê, le, e, u ou nenhum, pronomes ile ou elu e final de palavra e são mínimas.

Não acho que vou presenciar uma grande quantidade de personagens usando eld ou elz tão cedo. Quem dirá ael, ale, ilae, ily, il ou vários outros neopronomes interessantes. Então, é: a possibilidade de ver experiências próximas da minha representadas em mídia é mínima.

Enfim, sensações de gênero são algo que eu gosto de presenciar em relatos e isso é carregado para a ficção também. Acho que eu não faço tanta questão de ter como representação pessoas com o meu gênero ou de identidades de gênero parecidas, em comparação a ter reflexões sobre gênero em geral.

Baker Thief é um livro com protagonista bigênero; faz tempo que li, mas tenho quase certeza que Claire reflete sobre a questão de se apresentar como homem durante o trabalho mas como mulher quando está roubando exocores. Pixel tem várias passagens que indicam que um dos motivos de protagonista se isolar tanto é a questão da maldenominação. São bons exemplos do que quero ver mais por aí.

(Coincidentemente, ambos os livros basicamente também lidam com relações entre pessoas arromânticas alossexuais e pessoas alorromânticas assexuais, o que é uma dinâmica que gosto de ver também.)

Se olhar lugares como /r/XenogendersAndMore, tem um monte de OCs (original characters; personagens originais) e interpretações de personagens existentes como xenogênero ou de outras identidades de gênero incomuns. Mas, novamente, isso não significa muita coisa pra mim quando não há uma exploração.

Não que identidades de gênero precisem ter uma razão (e acho bem ruim quando tentam fazer justificativas biológicas para ausência, fluidez ou multiplicidade de gênero). Pessoas e personagens também podem ser algo sem haver muita reflexão sobre isso.

No entanto, a ausência de reflexões sobre gêneros de uma forma que não tem (só) a ver com corpo ou com papéis de gênero é o que me faz falta nas representações não-binárias que existem por aí. Uma maior diversidade de identidades de gênero e de conjuntos de linguagem seria agradável e importante, mas eu quero consumir mídia que não só faz isso mas que vai além!