Meus pensamentos sobre o jogo Dandara

(Metroidvania que saiu em 2018 e está disponível para Switch, PS4, Xbox One, PC, iPhone/iPad e Android)

Dandara foi um dos meus primeiros jogos no Switch.

Eu estava em dúvidas entre Celeste, um jogo que havia lançado pela mesma época e que muita gente falou sobre, e Dandara, um jogo um pouco mais barato, e brasileiro. (Só mais tarde soube que quem fez a arte de Celeste era BR também.)

Ambos os jogos tinham gameplay em pixel art, eram indies e focavam em um estilo de movimento inovador, ainda que Celeste fosse jogo de plataforma e Dandara fosse mais sobre exploração e ação.

Decidi pelo jogo brasileiro.

Representação

Personagens principais mulheres em jogos não são tanta novidade quanto eram na época que Metroid, Tomb Raider e Shantae lançaram.

Mas personagens principais negres...? O único exemplo que consigo pensar é Marcus Holloway, de Watch Dogs 2. Ou, se jogos de meme cheios de piadas ofensivas contam, suponho que Charles Barkley em Barkley, Shut Up and Jam: Gaiden conte.

Mas, se eu for pensar em mulheres negras, eu mal consigo pensar em exemplos de personagens em geral, muito menos personagens importantes, a não ser que eu conte jogos aonde é possível escolher o tom de pele e o gênero de quem você controla.

Então, querendo ou não, e mesmo sendo algo que não devesse ser político por si só... Dandara ter uma mulher negra como protagonista é algo raro e um sinal de que o grupo que desenvolveu o jogo (todos homens brancos, até onde sei) preferiu dar esse passo a frente do que ter possivelmente mais sucesso entre gamers (aviso de conteúdo para gamergate, misoginia e campanhas de ódio, assim como retórica possivelmente capacitista).

Na Steam, perguntas e comentários sobre Dandara questionam se este é um jogo "SJW", ou afirmam fervorosamente que a raça e o gênero da protagonista são irrelevantes porque o jogo não é político.

Eu não sinto que tenho domínio do assunto suficiente para julgar a personagem Dandara como boa ou má representação, porque tem um monte de nuances que deveriam ser analisadas nesse tipo de julgamento.

Mas me sinto segure em dizer que:

  • Ter uma personagem principal que é uma mulher negra é raro a ponto de deixar muita gente insegura;
  • A representação poderia ter sido feita de forma pior/mais ofensiva;
  • É impossível dizer que o jogo não contém política, mesmo que tivessem escolhido outra inspiração para personagem principal que não fosse mulher e/ou negra.

A temática de opressão e ditadura

Aviso: Vou falar aqui das inspirações do jogo, as quais incluem escravidão e ditadura militar. Também vou dar exemplos de discriminação pesada que ocorrem atualmente e falar de nazismo. Além disso, haverão spoilers sobre toda a história do jogo.

A descrição oficial do jogo é a seguinte:

Em um universo bizarro onde os oprimidos estão à beira do esquecimento, Dandara despertou para remodelar o mundo.

É difícil não ver tal descrição como ofensiva.

Não foi algo proposital, acredito.

Mas isso não me parece sarcasmo. E, se não é sarcasmo, os desenvolvedores realmente acham que esse tipo de situação só aconteceria num universo bizarro.

Questões de grupos oprimidos sempre são silenciadas. Às vezes porque é possível justificá-las como algo distante de nossa realidade, às vezes porque é possível justificá-las dizendo que aquelas pessoas merecem, às vezes porque é possível dizer que não é uma questão importante ou urgente.

Alguns exemplos rápidos de grupos que "caíram" ou que estão em risco de "cair no esquecimento", em geral pelo meio do extermínio e/ou da assimilação forçada: um episódio de podcast que fala sobre como o governo estadunidense está cometendo um genocídio contra imigrantes pode ser encontrado aqui, uma notícia que usa a desculpa "esse grupo não existe" para justificar abusos queermísicos de direitos humanos na Chechênia pode ser encontrada aqui, e povos indígenas no território dito brasileiro estão sendo continuamente dizimados por conta de interesses colonialistas/capitalistas (alguns textos sobre isso podem ser vistos aqui, aqui e aqui).

Talvez a ideia seja apontar que nosso universo seja bizarro também?

Não sei. Ainda me parece o tipo de descrição que reafirma para gamers o quanto isso tudo é só ficção e o mundo real é bem melhor.

Enfim, a questão de Dandara lutar contra o esquecimento de grupos oprimidos é algo político, e isso também se manifestou nos medos de doutrinação SJW da população gamer da Steam.

A inspiração para a personagem Dandara é Dandara dos Palmares, uma guerreira que ajudou a defender o Quilombo dos Palmares, e que foi esposa de Zumbi.

Isso tem a ver com a questão da ideia original do jogo ter sido colocar a escravidão como tema. Nesta entrevista, os desenvolvedores falaram que teriam que fazer muito mais pesquisa para que acertassem fazer algo sobre o tema como homens brancos e de classe média, e que assim trocaram para outra situação política brasileira de opressão: a ditadura.

A primeira área grande do jogo, a Vila dos Artistas, tem diferentes personagens que falam sobre como as coisas eram melhores antes, e sobre como basicamente se trancaram dentro de casa por conta dos exércitos eldarianos.

A última coisa a fazer na área é lutar contra e matar Augustus, que eu tenho quase certeza que é chamado de general no texto do jogo, mas não consigo achar agora. Se fizeram bastante pesquisa para as inspirações do jogo, não duvido que esta seja uma referência ao primeiro nome do Pinochet (Augusto), que também era general.

Eu não sei se algo do jogo dá alguma ideia da relação que a segunda luta de chefe do jogo tenha algo a ver com a temática de lutar contra a opressão/ditadura, mas a última luta é contra Eldar, o ditador (ou o conselho de ditadores?), e literalmente começa com Eldar mandando uma mensagem pela TV, e com Dandara tendo que destruir a TV.

Pra quem sabe o quanto a TV foi influente em manter opiniões favoráveis à ditadura, o simbolismo aqui é ótimo. {x} {x} {x} {x}

O problema é que, intencionalmente, a história foi mantida o mais simples possível. Isso significa que há poucos diálogos, pouques personagens, e uma história bem simplificada de "forças do bem contra forças do mal".

No momento político atual, com gente defendendo a ditadura militar ou mesmo a querendo de volta, acho que este tema poderia ter sido utilizado de forma mais impactante. A ideia de que nazista só significa "pessoa ruim" ou "ideologia estrita" facilmente identificável facilitou a ascensão da direita atual, pelo distanciamento dessas coisas. {x} {x} {x} {x}

Porém, por se manter dentro das limitações de uma história simples, sem nuances, quase sem diálogos ou personagens, e que dá espaço demais para só imaginar o que aconteceu, Dandara perde a chance de ser um jogo antifascista de forma mais catártica (se for direcionado mais à esquerda) ou educativa (se for direcionado mais à direita).

Gameplay

(Esta seção contém alguns spoilers, mas nada muito específico.)

Movimento

Dandara só pode se movimentar por lugares que têm Sal em sua superfície. Isso faz com que o movimento se dê em questão de pulos, e que as áreas sejam bem interessantes em questão de movimento.

Por exemplo, a câmera vai mudando de acordo com cada corredor, então o que é chão e teto, esquerda e direita acaba sendo relativo. No início, muitas pessoas ficaram confusas por conta do mapa não estar sempre na mesma direção de quem está jogando, então os desenvolvedores adicionaram um botão para rotacionar o mapa temporariamente.

Embora seja possível explorar mais de um caminho, é comum que só um caminho realmente leve a alguma coisa, enquanto outros acabam quando há a necessidade de algume item ou habilidade que Dandara não conseguiu ainda.

Tais itens/habilidades geralmente também dão atalhos práticos para percorrer áreas anteriores.

Há várias áreas relativamente vazias, o que eu não acho um problema, já que o movimento é tão rápido. Elas dão bons pontos de descanso e/ou antecipação, aonde é possível curtir o cenário ao invés de prestar atenção em ataques.

Níveis

É possível acumular Apelos do Sal de diversas formas (matando inimigues, abrindo baús, passando por resquícios de pessoas que morreram). Acumulando o suficiente, é possível gastar para "passar de nível".

O número do nível é só um indicador de quantas vezes Apelos foram gastos, e de quantos Apelos serão necessários para o próximo nível. O que importa mesmo são as barras que medem:

  • Quantos corações de vida Dandara possui
  • O quanto cada Essência de Sal recupera corações
  • O quanto de energia para habilidades Dandara possui
  • O quanto cada Infusão de Sal recupera energia

Só é possível ganhar níveis em acampamentos. Ao entrar em um, o número de essências/infusões volta ao número máximo, assim como os níveis de vida e de energia. Porém, todes es inimigues voltam para o lugar (fora algumes que só precisam ser derrotades uma vez).

Isso faz com que seja possível "farmar" em algumas áreas, isto é, não sair de longe do acampamento, matar o que estiver por perto, ganhar Apelo, e repetir o processo. Em alguns pontos pode ser interessante fazer isso, especialmente se o nível seguinte estiver próximo e a próxima área é difícil.

Combate

Há uma série de inimigues pelos mapas. Em geral, você tenta matá-les com flechas, que possuem certo tempo de carregamento e cujo alcance não é muito longo.

Dandara vai conseguindo uma série de "tiros especiais" diferentes em sua jornada, mas estes gastam energia.

Quando Dandara leva dano, fica suspensa no ar, e não há muitos frames de invincibilidade, então é necessário certo cuidado. Tomar uma infusão ou essência para recuperar energia/vida também leva alguns segundos, e a ação pode ser anulada se Dandara leva dano durante a ação.

Assim, é necessário certo planejamento para passar por cada área, o que é muito legal! Muitas críticas ao jogo tinham a ver com sua dificuldade, mas eu não tive tanta a ponto de me frustrar muito, porque áreas que pareciam difíceis ficaram mais fáceis de lidar depois de aprender como lidar com elas.

As lutas de chefes são muito legais, embora eu não tenha achado a última tão difícil ou interessante quanto as outras.

Se Dandara morre, perde a maior parte de seus Apelos de Sal e volta para a última bandeira hasteada (que pode ser um acampamento ou em alguns outros lugares designados). Mas é possível conseguir os Apelos de volta, indo até o lugar da última morte e passando por ele (ou atirando nele para os apelos virem assim como vêm des inimigues derrotades).

Ambientes

Os ambientes são bonitos e bem caracterizados. Minha única crítica é que a primeira área grande é bem mais interessante e profunda do que quase todo o resto.

Cada área traz um conceito original, de qualquer forma. E todas elas passam por mudanças permanentes depois de certos eventos.

Acessibilidade

O jogo tem umas opções que o deixam mais fácil, como a presença de mais acampamentos e a opção de reviver na mesma sala que a morte. Eu não usei nenhuma delas, mas se alguém tiver comprado o jogo e não estiver conseguindo avançar, estas podem ser opções boas.

Conclusão

Eu gostei de Dandara! É um jogo com referências brasileiras, gameplay único, nível de dificuldade que achei bom, lutas de chefes fantásticas e contra a ditadura.

Porém... alguns aspectos do jogo parecem meio incompletos. Talvez teria sido interessante terem chamado pessoas que fazem parte de mais grupos marginalizados para escrever a história e colocar mais detalhes nela, além de uma expansão da área da cidade para dar mais cara de área final. Talvez ter mais uma área diferente para explorar seria interessante também.