Sobre "esquerdismo" superficial

Um desabafo acerca de certos comportamentos preocupantes.

Ser antifascista e anticapitalista não é só bom, como também necessário para uma boa convivência com pessoas marginalizadas.

Só que só se dizer isso por si só é vago e insuficiente. Alguém pode ser isso e achar que:

  • Colonialismo, escravidão e/ou capitalismo foram "males necessários para avançar a civilização";
  • Todas as pessoas precisam produzir para sua sociedade e quem for incapaz de fazer isso que morra;
  • Mulheres são "menos inteligentes" que homens;
  • Cromossomos definem gênero, gostos e personalidade;
  • Ser heterodissidente é "capricho burguês";
  • Fazer sexo/buscar satisfação sexual sem fins reprodutivos é "desvio capitalista";
  • Qualquer desvio de comportamento, capacidade física e sexo biológico precise ser consertado para alguém "ser saudável";
  • Pessoas que possuem traumas ou desconfortos com coisas consideradas comuns não merecem espaços aonde tais coisas possam ser evitadas, porque isso prejudica a liberdade de expressão alheia;
  • Só gêneros binários ou que possam ser comparados aos binários sejam identificações válidas;
  • Estão certas outras "opiniões" que prejudicam pessoas marginalizadas e que na verdade estão próximas do que fascistas e outros grupos reacionários acreditam.

Pra confiar que alguém tem políticas mais profundas e inclusivas do que vagamente ser de esquerda, não basta só ver alguns rótulos no perfil. Porém, eu me deparo com vários perfis de pessoas que parecem querer ser vistas como confiáveis apenas por, sei lá, fazer piadas contra gente famosa de direita.

Isso me leva a pensar que parece ter gente que só gosta de ser de esquerda como estética.

Mais precisamente, como uma forma de se sentir intelectualmente superior a gente reacionária (ou até a gente que não tem contato profundo com assuntos políticos), de se sentir por dentro dos assuntos por ficar compartilhando notícias sobre o governo fazendo coisas ruins (sem ligar muito para pessoas que estão sendo diretamente afetadas para isso) e de se sentir pertencente a um grupo com seus próprios ícones e memes e afins.

Eu não quero acusar nenhuma pessoa em particular disso, porque o que se vê superficialmente nem sempre é tudo o que a pessoa faz. Mas é a impressão que me passa quando vejo certos comportamentos que me parecem contraditórios.

Algumas pessoas compartilham um monte de notícias e piadas sobre o que está acontecendo no governo, mas não querem usar avisos de conteúdo porque "todo mundo precisa saber e não é pra ninguém evitar em qualquer ambiente", não compartilham relatos pessoais ou pedidos de ajuda de pessoas marginalizadas sofrendo com as consequências dessas decisões, não compartilham informações sobre eventos ou organizações que combatem as ações do governo, etc.

Algumas pessoas entendem que fazer piada de grupos marginalizados é errado, mas assim que encontram alguém "agindo estranho" (fora das normas sociais perpetuadas pelo capitalismo e/ou por culturas opressivas), expõem o quanto aquele comportamento é ridículo, às vezes até racionalizando algum motivo para tal comportamento ser discriminatório. Isso coloca um alvo na cabeça de pessoas que muitas vezes são marginalizadas e que poderiam ser contatos úteis na hora de planejar algum tipo de ação direta; mas a vontade de parecer superior em relação a quem é diferente é maior.

Algumas pessoas entendem que gay, trans, indígena, mulher, autista ou afins não são xingamentos num nível direto, mas não se importam em diminuir tais grupos em xingamentos mais indiretos ou piadas que ridicularizem "oponentes".

Algumas pessoas entendem que estão sendo oprimidas pelo capitalismo (e talvez também por misoginia, racismo, heterossexismo, etc.), mas se recusam a se abrir para entender que pautas que não as afetam também existem e são válidas, e que é sim importante não contribuir com sistemas opressivos onde puder.

Eu não acho que há alguma obrigação de alguém só por estar em uma rede social de engajar com certos conteúdos ou de ir atrás de se posicionar em todas as questões possíveis. Também não acho que alguém precise ter uma cota de seguir/compartilhar contas de cada grupo marginalizado para ser alguém considerade confiável em relação a certa questão.

Mas é complicado ver gente que só fala de um tipo de questão política (quando tem pessoas falando sobre muito mais questões políticas em volta) reclamando que o resto das pessoas não é ativista suficiente por não postar exatamente o mesmo tipo de conteúdo. Especialmente quando também não há respeito em relação a outras pautas. Parece mais gente tentando seguir uma estética de militante do que alguém que se importa com grupos oprimidos.

Redes sociais são sim boas para compartilhar informações e convencer pessoas que sua ideologia é melhor. Mas quando isso é feito com base na ideia de ter uma posição superior enquanto o resto não sabe de nada e precisa ser educado, isso não vai construir solidariedade, e pode ser um sinal de que é quem quer ensinar que tem muita coisa pra aprender.

Eu não gosto da ideia de que ativismo em redes sociais não serve pra nada; a internet é uma grande fonte de informações. Mas é muito importante construir redes de apoio, ação e educação que não sejam apenas fundamentadas em postagens que vão desaparecendo à medida que mais coisas são postadas.

Meu ponto aqui é que ativismo político é importante e necessário, mas:

  • Ele é vazio se não se preocupa em incluir/liberar o máximo de grupos não-intolerantes possível;
  • Para que um movimento ganhe forma e força, não é suficiente espalhar notícias, memes, piadas e humilhações de oponentes;
  • Formar redes fortes que sejam bem informadas e inclusivas para que ação direta possa acontecer deveria ser algo considerado muito mais importante do que atacar pessoas por serem diferentes ou por não terem paciência/energia para lidar com notícias ruins o tempo todo;
  • Está tudo bem não querer engajar com todos os assuntos políticos o tempo todo em todos os lugares, mas é meio suspeito ver pessoas em suas contas pessoais só se importando com algum aspecto específico de política (e possivelmente cobrando que outras pessoas liguem para tal aspecto específico como se fosse a coisa mais importante do mundo).